por Roberto Pereira d’Araújo

O grau de desinformação que é percebido nos debates e na imprensa é impressionante. Quem tiver a paciência e a curiosidade de ler este texto, vai poder entender o dilema sob uma ótica que lhe parecerá inédita. Para avaliar o que ocorreu é preciso compreender como o setor brasileiro funciona. Quem entender verá que há duas grandes vítimas do desastroso processo implantado no Brasil: Uma, a Eletrobras, a outra, o próprio consumidor brasileiro.

  1. Introdução

Já há algum tempo, a física quântica vem nos informando sobre a peculiar forma de conexão entre partículas que se encontram distantes no espaço físico. O termo entrelaçamento quântico é um fenômeno da mecânica quântica que observou que dois ou mais objetos estão de alguma forma muito mais ligados do que se pensa, mesmo que possam estar espacialmente separados[1].

Recentemente, artigos ainda mais intrigantes estendem esse conceito para outras áreas que, aparentemente, nada têm a ver com essa curiosidade física. Por exemplo, efeitos desse princípio no mecanismo da memória parecem convidar a uma curiosa extensão dessa teoria[2].

Na economia e na sociedade, vivemos uma era de conectividade crescente entre equipamentos e entre pessoas através das redes de telecomunicações. Hoje os cidadãos parecem estar mais conectados via redes sociais do que no mundo à sua volta. Exageros à parte, essa promissora tecnologia tem o potencial de alterar muitas relações econômicas. O mundo precisa estar atento ao poder de simplesmente eliminar certas atividades em favor de outras cada vez mais tecnológicas e conectas.

Como um enigma, em oposição a essa moderna e estruturante visão unificada da realidade física e social, a comunidade moderna também vive uma transposição do individualismo filosófico, esse incontestável, para uma ótica puramente econômica, elevando esse foco individualista ao mais alto grau e como célula principal da moderna economia liberal.

O que se pretende apresentar aqui é mostrar que, em outros momentos históricos, a combinação entre coletivismo e conectividade revelou o que se pode classificar como verdadeiras obras primas da tecnologia da época. O caso do setor de energia elétrica no Brasil é um desses exemplos onde se percebe que uma sociedade atenta é capaz de organizar algo coletivo e benéfico a todos os indivíduos. Filosoficamente, um “aperto de mãos” entre duas óticas tão antagônicas.

Entre os primeiros estudos que revelaram a singularidade geográfica brasileira está o projeto Canambra. Um consórcio contratado pelo governo brasileiro e o Banco Mundial, em 1962, o mesmo ano de fundação da Eletrobrás.Os objetivos eram os estudos do potencial hidrelétrico e de mercado da região Sudeste do Brasil. O consórcio era formado pelas empresas canadenses de consultoria Montreal Engineering e Crippen Engineering. Esse consórcio realizou um trabalho pioneiro de planejamento integrado do setor elétrico nacional e o primeiro levantamento detalhado do potencial brasileiro, já que foi feito um estudo rio por rio – da cabeceira até a foz – do potencial energético da região.

Um decreto federal de 1964 fez com que a Eletrobrás ficasse responsável pelo acompanhamento da execução dos projetos propostos pelo Canambra. Em 1967, com a aprovação do relatório final, o governo federal delegou à Eletrobrás, a revisão do programa expandindo-o para as regiões Norte e Nordeste do país e ampliando a sua área de atuação com a criação de mais duas subsidiárias regionais, a Eletrosul e a Eletronorte.

Esse estudo revelou um reflexo positivo da nossa geografia sobre a exploração de potenciais hidráulicos no território nacional. É como se esse “entrelaçamento” estivesse ali para ser descoberto. É o que se pretende expor aqui.

  1. O território brasileiro.

O sistema de Coordenadas Geográficas é uma forma de representação cartográfica utilizada para representar e localizar qualquer ponto da superfície terrestre. Esse sistema é composto por algumas linhas imaginárias, chamadas de Latitudes e Longitudes.

A latitude é a distância em graus de qualquer ponto da Terra em relação à linha do equador. É também chamada de paralelo por se tratar de linhas imaginárias traçadas paralelamente ao equador.

Considerando territórios contíguos, o Brasil abrange 39 graus desde o 5 ° 16 ′ de latitude do ponto mais ao norte (fronteira com a Guiana no Parque Nacional de Monte Roraima) até -33 ° 44 ′ da fronteira com Uruguai perto de Barra do Chui. A Rússia vem em segundo lugar com um diferencial de 36,5 graus: o ponto mais setentrional está em 77 ° 43 ′ (a ponta da Sibéria ao sul da Ilha Bolchevique) até o 41 ° 11 ′ da fronteira com o Azerbaijão. O Chile em terceiro com 36,4º dos 17 ° 30 ′ da fronteira com o Peru e Bolívia, para 53 ° 53 ′ de Cape Froward.

Apenas por essa característica, com um imenso território, como imaginar que as consequências da sua geografia passassem despercebidas sob o ponto de vista econômico?

Como imaginar que não tivéssemos a expertise para perceber as vantagens? A Eletrobras teve!

  1. A excepcional hidrologia.

Por conta dessa “liderança”, temos quatro tipos de clima. O equatorial úmido no Norte, o tropical no Sudeste e Centro-oeste, o tropical semiárido no Nordeste e o subtropical úmido no Sul.

Além disso, o Brasil possui o maior volume de recursos renováveis ​​de água doce, totalizando aproximadamente 8.233 quilômetros cúbicos. Isso significa aproximadamente 12% dos recursos de água doce do mundo. A Amazônia, apenas no território brasileiro, abriga mais de 70% do total[3].

Em função da sua geografia, dispomos de rios classificados como “de planalto”. Em geral, as declividades onde estão localizadas as nossas usinas ocorrem entre dois segmentos razoavelmente planos. Portanto, ao se represar rios desse tipo, a tendência natural é a formação de grandes reservatórios que são capazes de armazenar grandes volumes d’água.

O desenvolvimento de um setor elétrico fundado em hidroelétricas sempre foi uma obviedade e a necessidade de industrializar um país de base agrícola impulsionou esse desenvolvimento. Assim, as grandes represas, apesar de causar impacto na região, não surgiram por visões megalomaníacas ou por obsessão por obras “faraônicas”, como, muitas vezes, o setor foi acusado. Elas são consequência da geografia brasileira.

Outra característica, também fruto de sua geografia de planaltos e planícies, é que os rios percorrem grandes extensões antes de desaguar no mar. Apenas para citar alguns exemplos, eis a extensão de alguns rios brasileiros.

Rio Paraná – 3942 km.

Rio São Francisco – 2800 km.

Rio Madeira – 3315 km.

Rio Tocantins – 2700 km.

Em função dessas características, a seguir, apresentam-se aspectos do sistema brasileiro que o distingue significativamente dos outros.

Evidentemente, o Brasil iria aproveitar essa singularidade. Mas, havia várias formas para que isso fosse realizado. No entanto, como vamos demonstrar, essa realidade geográfica precisava ser “lida” buscando uma eficiência que não é encontrada em nenhum outro pedaço da terra. E, foi exatamente essa geografia que prevaleceu na construção do nosso sistema.

  1. Por que o sistema brasileiro é diferente de todos os outros?

A melhor maneira de entender a singularidade do nosso setor é imaginá-lo surgindo da estaca zero.

Suponha um rio onde um investidor construa a usina hidroelétrica 1 com 100 MW garantidos[4], mostrada na figura abaixo. Como sua usina tem um reservatório, apesar da afluência ser muito variável como a do gráfico, ela consegue regularizar as variações e garantir uma energia equivalente à linha tracejada. Parte das afluências maiores é perdida, pois seu reservatório não tem capacidade para guardá-las para ser usada na próxima seca, mas o reservatório consegue estabilizar parte das afluências garantindo uma energia firme.

Figura 1

Vamos supor que, num segundo momento, outro investidor constrói outra usina rio acima com a mesma capacidade. Como a usina 2 também tem reservatório, consegue regularizar mais um pouco o rio. A afluência percebida pela usina 1, agora, é “mais bem-comportada”, onde as secas não são tão profundas (curva vermelha). Imediatamente, a capacidade de garantir energia da usina 1 aumenta. Agora, a usina 1 produz 110 MW firmes. Não há aumento de capacidade. Ninguém adicionou novas turbinas. Apenas a gestão da água no tempo possibilita isso.

Figura 2

A pergunta que surgiria entre esses 2 investidores é: Quem é o proprietário desses 10 MW firmes que surgem sem acréscimo de nenhuma nova turbina ou gerador?

Da usina 1, já que quem gera essa capacidade são as máquinas de 1?

Da usina 2, já que quem alterou o comportamento da afluência percebida por 1 foi a usina 2.

Certamente o dono do reservatório 2 pode exigir um pedaço dessa energia. Será que ele teria direito aos 10 firmes? Como seria possível um investidor ganhar energia gerada por outro? Que critério adotar?

Não há uma resposta razoável para esse problema, pois é impossível separar essas funções de forma unívoca e indiscutível. Afinal, é preciso lembrar que a hidrologia pode variar ao longo do tempo e esse efeito também pode. Na realidade, quando se exige que a energia gerada tenha uma garantia, tanto o reservatório 2 quanto a usina 1 são peças importantes da “máquina” que perfaz esse serviço.

Até aqui não há grandes diferenças dos outros sistemas a não ser a combinação das variações de afluências (maiores em sistemas tropicais) e reservatórios.

Mas o “jogo” não acabou. Imagine que, assim como ocorreu no rio A, alguns quilômetros distantes, algo parecido ocorre no rio B. Lá duas usinas 3 e 4 iguais às 1 e 2 perceberam o mesmo efeito e se associaram para explorar 210 MW.

Agora, imagine um outro investidor que, analisando os dados, resolve construir uma linha de transmissão que una os dois sistemas em um só, A-B. Acontece que o rio B têm uma hidrologia diferente de A e, geralmente, quando A têm afluências mais baixas, B têm afluências favoráveis. Agora, surpreendentemente, ao invés de se ter a soma das energias firmes, aparecem mais 20 MW firmes!