Além da geração de energia, a Eletrobras está relacionada à gestão das águas brasileiras. Por isso, a pauta de sua privatização esbarra na soberania nacional.

Por Daniel Mitidieri Fernandes de Oliveira e Maria Clara de Beiro Araujo*

No Brasil, a privatização, com oscilações de intensidade, está no centro do debate econômico desde a década de 90 do século passado. Mesmo não tendo a marca de governos privatizantes, as gestões do PT também adotaram algumas formas de privatização. Agora a agenda ganha muita força na gestão de Jair Bolsonaro. Seu atual ministro da economia declara, reiteradamente, a urgência na venda de empresas estatais para atender a objetivos arrecadatórios. O vice-presidente Hamilton Mourão reconhece que a ideia do governo federal é alienar “empresas não tão necessárias”. Nessa agenda de leilões, a Eletrobrás está colocada como pauta prioritária.

Controladora da maior parte do sistema de geração e transmissão de energia, a Eletrobrás é apontada como um dos alvos principais do processo de desestatização do setor elétrico, embora dificilmente possa ser qualificada como uma empresa pouco necessária. Isso porque não estão sob sua responsabilidade apenas a questão da energia em si, mas também inúmeros recursos hídricos que permitem o processo de geração energética. Ou seja, a Eletrobrás também está diretamente relacionada à parcela da gestão das águas brasileiras. Portanto, a pauta da privatização da Eletrobrás passa por questões muito delicadas, as quais tocam aspectos sensíveis de soberania nacional. 

Assim, o objetivo do presente artigo não é apontar as fragilidades da política de privatizar para reequilibrar balanços fiscais. Tampouco se buscará demonstrar como as experiências nacionais e internacionais com privatizações não acompanharam a propagandeada melhoria na qualidade dos serviços públicos. A proposta aqui apresentada é debater os riscos da transferência do controle da estatal Eletrobrás e suas subsidiárias para a iniciativa privada sob o ponto de vista da soberania nacional. Colocam-se em perspectiva a preponderante matriz hidroelétrica brasileira e as oscilações históricas nos volumes dos reservatórios responsáveis pela produção de energia.

Para enfrentar o tema sob o prisma da soberania, é preciso saber, antes de tudo, que o Brasil sozinho concentra 20% da água do mundo, segundo dados das Nações Unidas. A legislação do país, sensível a esse fato, disciplina o uso múltiplo das águas, conforme a Lei n° 9.433/97. De acordo com a legislação, a utilização hídrica será sempre equilibrada entre as demandas de: abastecimento humano, hidroeletricidade, pesca e agricultura, irrigação, navegação, abastecimento industrial, recreação e turismo e controle de cheias. Como se percebe, a água é um recurso natural polivalente. Contudo, está sujeita a dupla variação: uma de índole climática, que gera períodos de escassez, estiagens ou mesmo de enchentes; e outra de gestão de prioridades.

Sobre prioridades, o legislador pátrio determinou, por exemplo, que em momentos de escassez a gestão da água enfocasse o consumo humano e à dessedentação de animais. Estabeleceu-se que, a despeito da necessidade de observar o uso múltiplo da água, o abastecimento humano para consumo fosse priorizado em confronto com todas as demais utilizações. Trata-se de exigência formulada em decorrência não apenas do direito à saúde e a vida, inviáveis sem a oferta de água potável, mas também da necessidade de garantir a soberania nacional, fundamento da República brasileira, conforme o artigo 1°, I, da Constituição de 1988.

Com efeito, as reservas hídricas, considerando seus múltiplos usos, representam inegável aspecto de segurança nacional, e assim devem ser tratadas pelas autoridades públicas. Nesse contexto, a privatização dos potenciais geradores de energia hidroelétrica redunda em perigo para o Estado brasileiro que hoje detém essas reservas. Levando em consideração os aspectos de instabilidade climática que marcam o país nos últimos anos, é inegável a temeridade de concessões de recursos hídricos a empresas de capital exclusivamente privado, e, em muitos casos, estrangeiro. O deslocamento do interesse coletivo para enfoques tendencialmente lucrativos, ainda que não conste em textos normativos, é a tônica da preocupação.

A preocupação com soberania não é uma novidade. O Código de Águas, decreto federal n° 24.643, editado em 1934, foi o diploma que transferiu para a propriedade do Estado todos os rios sob o domínio dos donos dos territórios onde eles estavam localizados pensando justamente em questões estratégicas. Em relação às quedas d´água com potencial hidrelétrico, foi estabelecido que a União seria a proprietária, só sendo possível que um particular as explorasse mediante delegação do Poder Público. A partir da década de 1940, as primeiras empresas estatais (sob a forma de sociedade de economia mista) começaram a ser criadas com o objetivo de impulsionar o desenvolvimento nacional por meio de investimentos de infraestrutura, entre eles a geração, transmissão e distribuição adequadas da energia elétrica. A propósito, em 1945 foi criada a CHESF, em 1957 Furnas, em 1962 a Eletrobrás (holding do sistema), em 1968 a Eletrosul e em 1973 a Eletronorte. Percebe-se a clara fusão do caráter público das águas com o projeto nacional desenvolvimentista.

Ora, faz sentido essa fusão. O Brasil é o terceiro país com o maior potencial hidrelétrico do planeta, o que significa dizer que é absolutamente razoável que nossos recursos hídricos sejam utilizados para o desenvolvimento econômico. Por outro lado, não se pode esquecer que é dever do Estado garantir que esse progresso não produza efeitos colaterais sobre as demandas mais básicas da população. Não por acaso, o Constituinte originário de 1988 determinou que o domínio dos cursos de águas seria sempre do Poder Público, variando entre União e Estados conforme parâmetros geográficos. O caráter público das águas representa um projeto ético de soberania nacional, que enxerga na proteção da pessoa humana um valor tão digno quanto o desenvolvimento econômico.

Incrivelmente, a ideia dominante hoje no governo federal é oposta a essa. Trata-se de um culto quase que fanático em favor da governamentalidade privada, negando a relevância de bens coletivos serem geridos pelo Estado e pelo direito público. Ocorre que a incapacidade de o Capital lidar com justiça em tempos de crise é de sua estrutura, como já demonstrado pelo filósofo norte-americano Michael Sandel sobre o custo da água potável durante o furacão Katrina nos EUA. O mercado não é o locus mais bem adaptado para lidar com proteção de grupos vulneráveis, especialmente em questões de acesso a bens indispensáveis a uma vida digna.

O elemento diferenciador do modelo energético brasileiro é justamente sua gestão pública, estatal, caracterizada por um sistema altamente integrado com reservatórios nas várias regiões geográficas. O gestor do sistema intermedia as variações climáticas compensando perdas e ganhos, garantindo uma estabilidade sem precedentes em outros países igualmente dependentes da matriz hidroelétrica. Com a privatização e as propostas de fragmentação do sistema, essa segurança fica totalmente ameaçada em nome do atendimento de margens de lucros.

Entregar à venda as empresas estatais responsáveis pela exploração das principais usinas hidroelétricas nacionais é medida grave, que atenta frontalmente contra os interesses públicos da sociedade brasileira, ignorando o atual contexto de crise climática. Ademais, é impossível garantir, ao “mercado comprador” interessado na aquisição dessas empresas, uma vazão mínima de água capaz de garantir um patamar pré-estabelecido de produção elétrica. A exemplo do ocorrido com a crise da Região Hidrográfica do Atlântico Leste a partir de 2014, pode-se concluir que, na balança entre a garantia do lucro e o respeito às leis reguladoras sobre o tema, a privatização prestigia o primeiro.

Em síntese, a privatização da Eletrobrás e de suas subsidiárias não será uma espécie de Deus Ex Machina, apto a fazer desaparecer os rombos fiscais do país, como sugerido pela equipe econômica do governo Bolsonaro. Tampouco trará recursos suficientes para grandes saltos de investimento público. Ao contrário, pode representar um ataque considerável a capacidade de gestão dos recursos hídricos, e, em última análise, da própria garantia da soberania política nacional.

Daniel Mitidieri Fernandes de Oliveira é Mestre em Teoria do Direito pela Universidade Federal do Rio de Janeiro – PPGD/UFRJ, com ênfase em democracia, desenhos institucionais e Estado Administrativo. Pesquisador do Laboratório de Estudos Institucionais – LETACI.

Maria Clara de Brito Araujo é Especialista em Direito Administrativo pela Universidade Cândido Mendes. Bacharel em Direito pela UFRJ. Advogada no Rio de Janeiro, vinculada ao escritório Advocacia Garcez.

Fonte: http://www.justificando.com