Camponesas ‘sempre foram subprotegidas’ quando se trata de políticas trabalhistas ou tributárias, avalia professor

Com a mesma caneta que assinou o decreto de flexibilização do porte das armas, em janeiro deste ano, Bolsonaro tem marcado, dia após dia, seu nome em uma lista de decisões impopulares e visto sua popularidade despencar. Fora de qualquer tipo de agenda positiva do governo, as mulheres camponesas observam, assustadas, a possibilidade de um retrocesso brutal de suas vidas.

Avanços econômicos e de direitos básicos de trabalhadoras rurais ficam ameaçados, de forma bem específica, diante da reforma da Previdência, que virou um imbróglio diante da falta de habilidade de articulação da turma do ex-capitão, e  da liberação de armas.

Previdência em xeque  

De acordo com Vinicius Fluminhan, especialista em direito previdenciário e professor da Universidade Mackenzie, as trabalhadoras do campo “sempre foram subprotegidas” quando se trata de políticas trabalhistas ou tributárias.

A proposta da reforma da Previdência equipara as idades de aposentadoria rural de homens e mulheres em 60 anos – antes, as mulheres podiam se aposentar aos 55 -, e exige comprovação de contribuição mínima de 20 anos.

Fluminham aponta que se a Previdência fosse vista como uma ferramenta de distribuição de renda, a necessidade de cobrir o rombo com ajustes agressivos aos mais vulneráveis cairia por terra. “Fazer uma lei é sempre complicado, mas, considerando as diferenças no país, é necessário ver o lado do mais fraco”, diz. O advogado expressa particular preocupação a respeito do grande número de aposentadorias por invalidez envolvendo trabalhadores rurais. “Não adianta querer aumentar a idade mínima e aumentar a vida ativa se não tivermos a garantia de que essas pessoas vão ter condições de ter boa saúde até os 60 anos. A conta uma hora vai chegar.”

Dificultar o acesso à Previdência também pode impactar negativamente a economia das comunidades. “Retira-se a oportunidade de aumentar a renda local. É um impacto nas gerações, pois se observa um movimento muito forte de saída da juventude do campo para garantir recursos à família”, diz Isolete Wichinieski, uma das coordenadoras executivas da Comissão Pastoral da Terra.

Com menos braços e recursos, o trabalhador voltado à agricultura familiar – chamado de segurado especial – também terá que se preocupar em fazer um pagamento mínimo de R$600 para garantir o seu recurso no futuro, já que sua contribuição é recolhida com base na produção. Se o valor alcançado for menor, ele deve complementar do próprio bolso. Se for maior, o pagamento dos próximos anos não diminui – e o governo embolsa essa quantia.

Para Maria José Morais, coordenadora nacional da Marcha das Margaridas – maior mobilização de massa das mulheres do campo, que acontece anualmente em Brasília -, as camponesas devem permanecer organizadas para questionar movimentos que retirem seus direitos.

Os grupos integrantes da Marcha discutem como prioridade outro tema além da reforma da Previdência: a flexibilização do armamento no campo.

O armamento e a violência doméstica

Algumas limitações impostas à posse de armas foram mudadas no decreto assinado por Bolsonaro. O prazo de validade da autorização para manter uma arma na propriedade passou de cinco para dez anos, e residentes em áreas rurais foram incluídos no grupo que teria, “automaticamente”, a necessidade de se armar. Isolete Wichinieski classificou a medida como preocupante. “Quem se beneficia são os latifundiários, que já estão armados há muito tempo”, diz.

Um relatório organizado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) em 2012 traçou o perfil socioeconômico das trabalhadoras do campo participantes da Marcha das Margaridas, e os dados referentes à violência mostram prevalência do abuso ao longo da vida das trabalhadoras. Das entrevistadas, 58% declararam terem sofrido violência moral ou psicológica. Duas em cada sete sofreram violência física, com o cônjuge sendo o agressor mais recorrente.

Maria José relata que a situação é desafiadora pela dificuldade em formalizar os abusos nas delegacias. “Nas reuniões, escutamos muitos relatos, mas boa parte das mulheres não tem estrutura no campo para fazer a denúncia.” Em um dos relatos feitos para a pesquisa do Ipea, uma trabalhadora desabafa sobre anos de medo: “Sofri agressões, tapas, socos durante quinze anos. Ele usava arma de fogo. Meus oito filhos presenciaram tudo. Saí dessa situação com a ajuda de uma enfermeira quando tive coragem de contar.”

Um cenário de acentuada violência doméstica foi o que a Secretaria da Mulher de Pernambuco teve que encarar quando se propôs a articular uma rede de intervenção em todo o Estado. Atualmente à frente da pasta, Silvia Cordeiro entende o processo como lento, mas de entendimento necessário. “O ciclo de violência é longo e complexo para as mulheres compreenderem a agressão. Não é uma coisa automática.”, diz. Para ela, existe uma “imensa janela aberta” com o aumento de armas de fogo dentro de casa, um elemento ainda forte nos dados de feminicídio. A fim contornar a situação, a iniciativa de Pernambuco foi da emancipação feminina pelo conhecimento.

“Novas estratégias de sobrevivência”

Com órgãos de políticas públicas voltadas à mulher em todos os municípios, a Secretaria trabalhou nos últimos anos para construir uma estratégia para a autonomia econômica das trabalhadoras no território pernambucano – planejamento que rendeu um prêmio da Organização das Nações Unidas à gestão por um projeto voltado às trabalhadoras rurais, o Chapéu de Palha. Ele fornece cursos de reciclagem e artesanato, por exemplo, nos períodos de entressafra.

Normeide Farias, coordenadora que atua na região do Rio São Francisco, acredita que as mulheres do campo devem ser entendidas como “sujeitas sociais” para que possam enfrentar as situações adversas do país, pressionando autoridades por políticas públicas ao mesmo tempo em que investem em formação complementar à renda.

No Censo Agropecuário de 2017, o IBGE registrou que, entre 2006 e 2017, o número de mulheres à frente dos empreendimentos cresceu cerca de 6%. Com políticas que atingem diretamente seus estilos e qualidade de vida, Silvia Cordeiro interpreta que não é o momento de perder a organização de luta pelos direitos, mas sim de “reinventar estratégias de sobrevivência”, independente do que determinem os papéis assinados em Brasília.

Fonte: Carta Capital