Os mais de 20 anos da grande onda de privatizações ocorrida no país nos anos 1990 poderiam ser tempo suficiente para analisar se as empresas privadas oferecem melhores serviços que as públicas. Porém, no que diz respeito ao setor elétrico, os especialistas afirmam que não há uma resposta a esta pergunta. O pesquisador em Energia do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (IDEC) Clauber Leite relata que já tentou fazer um levantamento neste sentido, mas percebeu que não dá para relacionar qualidade com o caráter público ou privada das companhias. “Tem empresas públicas ruins e excelentes, e empresas privadas ruins e excelentes”, afirma.

O diretor do Instituto de Desenvolvimento Estratégico do Setor Energético (ILUMINA) Roberto D’Araújo tem opinião semelhante. No caso das distribuidoras – as empresas que levam a energia até o consumidor – Araújo afirma que o principal investimento que deveria ter sido feito para evitar quedas de energia seriam redes subterrâneas, protegidas das intempéries. “Não há interesse das empresas em distribuição subterrânea, como é nos países desenvolvidos. Se você andar pelo Brasil inteiro, olhando os postes, estamos em um reinado da bagunça. Pelos padrões que a gente tá vendo, eu não vejo melhora (com as privatizações). Eu não vejo diferença entre distribuidoras estatais e privadas”, afirma. No caso específico do Rio Grande do Sul, que pode autorizar a venda da última fatia pública no ramo da distribuição nos próximos dias, também é difícil estabelecer que as privatizações tenham trazido alguma diferença com relação ao serviço público. Analisando as concessionárias gaúchas por uma série de indicadores da ANEEL, não é possível afirmar que as empresas privadas (RGE e RGE Sul – antiga AES Sul) sejam melhores que a CEEE-D.

No caso das reclamações, por exemplo, em 2018 observa-se uma proximidade no número de reclamações entre CEEE (20.573 reclamações) e RGE (19.425). Já a RGE Sul recebeu mais de 28 mil reclamações. Até abril de 2019, já foram registradas 6.925 reclamações contra a RGE Sul e apenas 2.680 para a CEEE – não há dados disponíveis sobre a RGE.

Se observarmos os tempos médios de atendimento de ocorrências emergenciais, a CEEE foi a empresa mais eficiente em 2018. O tempo médio de deslocamento da companhia foi de 29 minutos. A preparação se deu em 290 minutos e a execução em 51 minutos. Já a RGE levou 144 minutos para se deslocar, 386 minutos na preparação e 90 minutos na execução. A RGE Sul, por sua vez, levou 108 minutos no deslocamento, 486 minutos na preparação e 92 minutos na execução. Por outro lado, a CEEE foi a empresa que mais precisou atender ocorrências, ou seja, teve maior número de problemas reportados. Foram mais de 264 mil ocorrências, contra 145 mil da RGE e 175 mil da RGE Sul.

Números semelhantes se encontram nos indicadores DEC (Duração Equivalente de Interrupção por Unidade Consumidora) e FEC (Frequência Equivalente de Interrupção por Unidade Consumidora). A ANEEL estabelece índices que devem ser alcançados pelas concessionárias em cada cidade ou região. Em 2018, a RGE Sul não alcançou as metas do índice DEC em 44 de 50 cidades analisadas. A CEEE não alcançou em 40 de 52 cidades, e a RGE em 36 de 52 cidades. Já no índice FEC, a CEEE teve desempenho ruim em relação às privadas. Não atingiu a meta em 28 de 52 cidades, contra 11 da RGE Sul e oito da RGE.

Outro dado que a agência reguladora disponibiliza é o Índice ANEEL de Satisfação do Consumidor (Iasc), obtido anualmente a partir de pesquisa amostral realizada com consumidores de todas as distribuidoras. Divulgado desde 2000, o ranking tem mostrado as empresas que atuam no território gaúcho sempre com pontuação bastante próxima, longe das melhores do país e também das piores. Em 2018, por exemplo, de um total de 89 distribuidoras analisadas pelo país, a RGE figurou na 36ª posição com 72,31 pontos. A RGE Sul aparece na 39ª colocação, com 72,10 pontos. A CEEE-D ficou na 44ª posição com 70,73 pontos, à frente de diversas empresas privadas.

O conjunto destes índices não permite concluir que a privatização da CEEE-D trará benefício aos consumidores. No caso da CEEE-GT, que atua no ramo de geração e transmissão, ocorre o mesmo: a empresa ostenta hoje o melhor índice do país no que diz respeito à prestação adequada do serviço de transmissão. “A CEEE é eficiente. Esse argumento de que a CEEE é ineficiente não cola”, afirma o engenheiro Ronaldo Custódio, ex-diretor técnico da Eletrosul e idealizador do Atlas Eólico do Rio Grande do Sul.

Secretário aponta incapacidade de investimentos para a CEEESegundo Lemos, os problemas de caixa da CEEE apontam até mesmo para uma possível perda da concessão. “Os indicadores financeiros já em 2018 não foram cumpridos. Em 2019 dificilmente serão cumpridos pela sua incapacidade de geração de caixa. Dois anos seguidos não cumpridos geram abertura automática de um processo de caducidade (da concessão)”, diz. Para que isto não aconteça seria necessário ou vender a empresa, ou que o Estado aportasse R$ 2,4 bilhões.

Mas a presidente do Sindicato dos Eletricitários do Rio Grande do Sul (SENERGISUL), Ana Maria Spadari, aponta alternativas para sanar as contas da companhia. “A CEEE tem ações de diversas empresas, grupos pequenos. Basta o Governo autorizar a venda dessas ações, que está parada há três anos no Conselho da empresa. É um boicote”, denuncia.

Outra possibilidade é uma ação judicial que pode gerar cerca de R$ 8 bilhões para a CEEE, na qual a empresa pede uma compensação por não ter conseguido incluir os custos com os trabalhadores ex-autárquicos (trabalhadores da extinta Comissão de Energia Elétrica, vinculados à CEEE nos anos 1960)  no preço das tarifas. Em 2012, a CEEE já obteve a primeira vitória na Justiça, que incluía os gastos realizados até 1993. O Governo Federal pagou R$ 4 bilhões para a companhia. Atualmente, a CEEE cobra também os valores relativos ao período entre 1993 e 2014. “Por que eles não negociam esses recursos com o Governo Federal? O Estado pode até pegar emprestado metade desse dinheiro, R$ 4 bilhões resolve o problema da CEEE”, garante Spadari

Os ex-autárquicos, aliás, são um passivo que deve permanecer com o Estado, estima o secretário Artur Lemos. “Numa eventual transferência, por serem de origem do Estado, muito provavelmente terão que retornar ao Estado, eu vejo dificuldade de passar. Por uma emenda lá de 1967 eles passaram para a Companhia e isso causou uma anomalia”, diz. Hoje o passivo trabalhista com estes funcionários é de R$ 600 milhões, a serem pagos em um período de oito a dez anos. “É algo em torno de R$ 60 milhões por ano, 5 milhões por mês. Não é algo que seja insustentável”, opina o secretário.

Lemos explica que todos os detalhes relativos às privatizações estão sendo elaborados pelo BNDES, que foi contratado para fazer a modelagem. O Grupo CEEE hoje possui três empresas: uma holding, que, por sua vez detém outras duas empresas, a CEEE-D, de distribuição; e a CEEE-GT, de geração e transmissão. A tendência, segundo o secretário, é que, a distribuição seja vendida separadamente do ramo de geração e transmissão, caso a privatização avance na Assembleia Legislativa. “A gente acredita que a venda conjunta seja um caminho menos propício, porque tem perfis de possíveis interessados, que são negócios diferentes. Então, para que se consiga obter maior participação e concorrência, muito provavelmente a condução separada se desenhe na melhor oportunidade, mas isso quem vai dizer é o estudo do BNDES”.

O destino dos passivos da CEEE, se vão onerar o Estado ou serão passados para o comprador, também é incerto. “Passivos judiciais provavelmente serão assumidos pela companhia que comprar a CEEE, por sucessão. Tem passivos, por exemplo, de longo prazo, que são de empréstimos. Isso é uma questão de composição, isso a modelagem vai dizer. Daqui a pouco é preferível que o Estado fique com o endividamento que é de longo prazo em troca de uma receita atual, ou não. Tem passivo com a própria Fundação CEEE, que tem que ser equalizado, em torno de R$ 500 a 600 milhões. Há uma discussão em torno desse valor. Na visão dos empregados, seria de cerca de R$ 1 bilhão”, explica o secretário.

A avaliação dos valores das companhias também ficará a cargo do BNDES. “Nós não temos expectativa de arrecadação, porque primeiro tem que fazer uma valoração de todas as companhias. O que o mercado vem dizendo é algo em torno de 3 ou pouco mais de 3 bilhões para as quatro companhias (CEEE-D, CEEE-GT, CRM e Sulgás). Mas a gente acredita que com uma concorrência esse valor possa ser superior”, diz Lemos.

Como a avaliação e a modelagem do BNDES devem ficar prontas em 2020, os deputados estaduais, que poderão autorizar ou impedir as privatizações no início do mês de julho, irão votar sem dispor de muitas informações. “O Governo está encaminhando um projeto de lei que é um cheque em branco”, critica Diego Oliz, diretor de negociações coletivas do Sindicato dos Engenheiros do Rio Grande do Sul (SENGE).

Após os anos 1990, aumento de tarifas e apagão

Inicialmente, as privatizações no setor elétrico trouxeram dois grandes problemas para o país: aumento de tarifas e o famoso “apagão”, em 2001, o maior racionamento de energia da história brasileira. “Nos anos 90, houve muitas privatizações, no Brasil e em outros países. A gente observa, estatisticamente, que houve um aumento significativo do custo de tarifa, e não se percebeu aumento de qualidade, levando em conta que tem, nesse período, um avanço tecnológico, inclusive”, afirma o ex-diretor da Eletrosul Ronaldo Custódio.

A falta de investimentos privados foi considerada uma das causas do racionamento, que se originou da escassez de água nos reservatórios das regiões Sudeste e Nordeste. Por isto o Governo FHC abortou naquele momento a privatização da Eletrobras, que, recentemente, voltou à pauta. Por outro lado, o próprio Governo também deixara de investir. “Se nós tivéssemos uma linha de transmissão ligando o Sul ao Sudeste não teria tido um racionamento tão forte. Em uma empresa que está ameaçada de privatização, os investimentos caem. Eu não vou colocar um ar-condicionado, se eu vou vender meu apartamento. Como o Governo FHC queria vender todas as empresas, deixou de construir estas linhas. Depois do apagão, foi feita a obra às pressas”, explica o diretor do ILUMINA Roberto D’Araújo.

De lá para cá, houve mudanças que impediram um novo racionamento daquela magnitude. “Se valorizou mais o planejamento. Há planos de longo prazo. Tem uma empresa de pesquisa (a Empresa de Pesquisa Energética, criada em 2004) que se debruça sobre isto. Isso vai minimizando esse risco”, conta o pesquisador do IDEC, Clauber Leite.

Quanto às tarifas, já em 2000 o IDEC denunciava que, em São Paulo, os consumidores mais mais pobres, aqueles que consumiam menos energia, tinham percebido um aumento de 30% nos dois anos que se seguiam ao processo de privatização. Este aumento continuou, segundo o Instituto. “Tem aumentado acima da inflação historicamente. E já está em um limite que o consumidor não tem o que fazer. Quase metade da tarifa é tributo. A parte que serve de manutenção é um cálculo que não é para qualquer um, ninguém consegue fazer uma avaliação, é muito opaco. O termo caixa-preta é um jargão, mas é isso: é uma caixa-preta”, afirma Leite.

Segundo um levantamento do ILUMINA, o preço da energia aumentou 50% a mais que a inflação, de 1995 a 2017. Uma das vantagens que uma abertura de mercado pode trazer, a concorrência, não ocorre nas distribuidoras de energia, que é considerada um monopólio natural. “Isso foi vendido lá no Governo Britto como uma possibilidade que o consumidor teria de escolher a concessionária com a energia mais barata. Venderam uma farsa na época, que, na prática, não existiu. A concorrência pode existir na área de telefonia, na área de energia é impossível”, afirma o diretor financeiro do SENGE, Luiz Alberto Schreiner.

A regulação dos preços é feita pela ANEEL levando em conta o custo da energia, os investimentos e a manutenção, além dos impostos. Em tese, a busca é pela modicidade tarifária, termo que designa a busca pelos investimentos que garantam fornecimento de energia de qualidade ao menor custo possível. Por isto, privatizar uma empresa ou mantê-la pública pouco interfere na tarifa. “Uma empresa pública e uma privada funcionam sob as mesmas regras. A ANEEL que define as regras. O que difere é que a empresa pública tem um caráter social. As concessionárias privadas são muito menos tolerantes com inadimplência. A gente vê notícias de órgãos públicos e até hospitais tendo energia cortada”, afirma Schreiner.

Mesmo que hoje empresas públicas e privadas tenham tarifas semelhantes, foram as mudanças na regulação do setor, estabelecidas para atrair o capital privado, em 1995, que geraram a explosão nas tarifas. Segundo um estudo publicado pela Revista do BNDES, em 2007 o lucro líquido das 17 mais rentáveis empresas de geração e distribuição negociadas na Bovespa foi de 32%, em média. Pela regulação anterior a 1995, o setor elétrico possuía lucratividade fixada entre 10 e 12%. A empresa que lucrasse mais que isto deveria repassar para as que obtivessem um lucro menor.

Expansão com dinheiro público Apesar dos problemas, um dos objetivos do Governo Federal com as privatizações foi conquistado: a expansão do acesso à energia elétrica. Porém, os investimentos foram, em grande medida, financiados com dinheiro público. ”Desde 1995, o BNDES aportou mais de R$ 300 bilhões no setor elétrico, então não existe essa independência do setor privado”, afirma Roberto D’Araújo, diretor do ILUMINA.

Em sua dissertação de mestrado, de 2006, a então auditora do Tribunal de Contas da União, Regina Cláudia Gondim Bezerra Farias, mostra que dos R$ 27 bilhões pagos pelas empresas nas privatizações do setor elétrico da década de 1990, R$ 7 bilhões foram financiados pelo BNDES. “Isso significa dizer que 26% da venda do patrimônio público foi financiada com recursos públicos”, escreve a auditora. “Porém, esse percentual é muito superior, pois o BNDES além de financiar a compra do ativo, concedeu empréstimos para capital de giro”, conclui.

Além disso, aponta Gondim, o ágio que as empresas ofereceram para abocanhar o setor elétrico brasileiro era, em muitos casos, alvo de renúncia fiscal, saindo do bolso do contribuinte. “Na prática, uma parte significativa dos valores pagos na privatização retorna aos controladores sob a forma de redução de impostos”, escreveu a auditora.

No Rio Grande do Sul, o BNDES financiou 448 milhões na compra da CEEE Norte-Nordeste (que se tornou a RGE) cerca de 27% do valor total, que ficou em 1,635 bilhão. No caso da CEEE Centro-Oeste não houve financiamento do banco de desenvolvimento na compra pela americana AES, que, no entanto, se tornou uma das maiores devedoras ao BNDES, por outras aquisições que realizou no período.

Quando escreveu a sua dissertação, em 2006, a auditora do TCU apontou que boa parte das empresas não havia honrado os empréstimos. O Governo Federal permitiu que companhias estrangeiras entrassem nos leilões como sociedades de propósito específico, sem nada a oferecer como garantia dos empréstimos, além dos dividendos futuros que obteriam. Muitas delas, inclusive, com sede em paraísos fiscais.

O grupo estadunidense AES era apontado como o maior devedor por Regina Gondim, com dívidas de mais de R$ 3 bilhões. Seu calote na compra da Eletropaulo chegou a gerar uma CPI na Assembleia Legislativa de São Paulo. Em fevereiro de 2003, a então ministra de Minas e Energia, Dilma Rousseff, chegou a cogitar executar as garantias do empréstimo, o que significaria retomar a concessão da empresa.

De qualquer forma, dados do IBGE apontavam que, entre 1993 e 2003, o acesso à energia elétrica pulou de 89% para 96%. Ou seja, durante o processo de privatizações o país avançou na universalização do acesso à energia, ainda que com pesado financiamento estatal. Porém, para avançar ainda mais, chegando aos rincões do país, foi preciso entrar em cena mais dinheiro público, com o Programa Luz Para Todos, criado em 2004.

Entenda o histórico das privatizações de energia elétrica no RS 

Em 1996, o Governo Britto dividiu a distribuição de energia da CEEE em três empresas: CEEE Sul-Sudeste, CEEE Centro-Oeste e CEEE Norte-Nordeste. Em outubro de 1997, as companhias de distribuição de energia elétrica Norte-Nordeste e Centro-Oeste foram arrematadas com ágio de 82,62% e 93,55%, respectivamente. O governo gaúcho conseguiu levantar R$ 3,145 bilhões com as vendas. A CEEE Norte-Nordeste foi comprada por R$ 1,635 bilhão pelo consórcio formado pela VBC Energia (Votorantim, Bradesco e Camargo Corrêa), Previ (fundo dos funcionários do Banco do Brasil) e a empresa norte-americana Community Energy Alternatives, passando a se chamar RGE. O consórcio se tornaria conhecido como Grupo CPFL. Já a Companhia Centro-Oeste foi comprada pela AES Corporation, dos EUA, se tornando a AES Sul.

Ficaram, portanto, AES Sul, RGE e CEEE-D, cada uma com cerca de um terço da distribuição de energia do Estado (além delas, há pequenas cooperativas operando). Em 2016, o Grupo CPFL adquiriu a AES Sul, ficando com dois terços do mercado gaúcho, e passou a chamar a AES Sul de RGE Sul. Finalmente em 2017, a chinesa State Grid virou acionista majoritária do Grupo CPFL.

No ramo de geração e transmissão, a parte de termelétrica (CGTEE) foi federalizada, também no Governo Britto. E a CEEE-GT seguiu estadual, produzindo cerca de 18% da energia hidrelétrica do Rio Grande do Sul e também a maioria das instalações que compõem a Rede Básica de Transmissão do Estado.

Por Felipe Prestes via http://custoocultodaenergia.sul21.com.br