Dorival Gonçalves Júnior é eletrotécnico pela ETF-MT; engenheiro eletricista pela UFMT, mestre e doutor em Energia pela USP. Professor da UFMT desde agosto de 1981. Trabalha em cursos de graduação/pós-graduação vinculados as questões tecnológicas, sociais e econômicas decorrentes das cadeias energéticas, especialmente, da eletricidade, concomitantemente, atua como militante em movimentos sociais e sindicatos dos trabalhadores na reflexão e construção da análise da indústria de eletricidade sob a concepção da classe trabalhadora.


Energia Alerta – Qual a sua avaliação sobre o sistema elétrico brasileiro?

Dorival Gonçalves – Quando falamos do sistema elétrico brasileiro estamos nos referindo a uma das mais complexas cadeias de produção de eletricidade cujas características de produtividade – sem qualquer ufanismo – são inigualáveis no mundo.  Este sistema, construído e operado pelos trabalhadores, é dotado de uma força de trabalho de alta qualidade e produtividade distribuída entre as várias empresas contidas nas etapas que compreendem a produção da eletricidade: geração, transmissão e distribuição. Sob o predomínio de instalações hidrotérmicas – cerca de 125 GW instalados -, mais de 80% da eletricidade gerada anualmente advém de centenas de hidrelétricas distribuídas nas bacias brasileiras. Estas hidrelétricas estão interligadas entre si e com os centros de cargas por extensas linhas de transmissão por, praticamente, todo o território brasileiro, constituindo, a rede básica que compõem o Sistema Interligado Nacional. A rede básica está conectada a extensas redes de distribuição que disponibilizam a mercadoria eletricidade nas áreas urbanas e rurais do território brasileiro. Esta arquitetura industrial que combina trabalhadores, que se constituem numa força de trabalho de elevada capacidade de produção, com tecnologias de produção e bases naturais de elevada produtividade do trabalho, caso da hidroeletricidade, associada, a uma estrutura institucional (ANEEL, EPE, ONS, CCEE, etc.) que mantém a mercadoria eletricidade ao preço internacional, coloca a produção de eletricidade no Brasil, como um das fontes de maior lucratividade no mundo. Por isso, a enorme disputa entre as forças capitalistas industriais e financeiras para a manutenção da atual organização da indústria de eletricidade.


Energia Alerta – Falta planejamento para o setor?

Dorival Gonçalves – Quando nos referimos ao “setor” diz respeito a toda a cadeia de produção de eletricidade. Portanto, se identificarmos apenas as empresas que estão diretamente ligadas à cadeia de produção, estamos falando em milhares de interesses empresarias (entre as principais empresas temos: na geração 1356 empresas como Produtores Independentes e 601 como Autoprodutores – usinas hidrelétricas, termoelétricas, etc -; na transmissão 146 empresas; na distribuição 73 empresas; e, comercializadoras 126 empresas.) que atuam com o objetivo de maximizar os seus lucros próprios. Assim, a organização institucional privada e estatal que tem a finalidade de mediar à divisão dos lucros entre as empresas capitalistas industriais e financeiras, não consegue impedir as inúmeras contradições, e que, ideologicamente, são apresentadas como crises criadas por: “falta de planejamento”; “quebra de regras”; “intervenção estatal”; “ausência de sinais de preços”; etc.. Estas “crises” procuram ocultar o que realmente está em jogo. Isto é, a manutenção de altas taxas de exploração sobre os trabalhadores, bem como, a disputa intercapitalista no interior da cadeia. Para aqueles que não acreditam no que dizemos, convido-os, a analisar apenas dois eventos críticos da atualidade. O primeiro, diz respeito às distribuidoras “casualmente” descontratadas em cerca de 3.500 MWmédios, obrigando-as, a diariamente comprar esta eletricidade no mercado spot a R$822,83/MWh, situação institucional que está proporcionando um assalto aos trabalhadores brasileiros que pode alcançar mais de R$ 30 bilhões, pois caberá a nós pagar esta conta, seja como consumidores se repassada às tarifas, seja como contribuintes se assumida pelo tesouro. O segundo, está relacionado a tragédia que a população boliviana do departamento de Beni e do estado de Rondônia, especialmente, a cidade de Porto Velho está vivenciando com a cheia do rio Madeira, cujas condições de gravidade não podem desconsiderar a disputa travada entre os empreendedores das hidrelétricas de Jirau e Santo Antônio. Apesar dos eventos aqui citados, em geral serem apresentados como de origem natural, suponho, que não é necessário relacionar muitas informações veiculadas para se verificar a verdadeira gênese destas “crises naturais”. Por isso, repito, falar em: “erro no modelo”; “erro na escolha das fontes e das tecnologias”; e “erro no planejamento”, são – conscientemente ou não – formas de explicar a realidade ocultando as contradições existentes.


Energia Alerta – Qual o risco para as empresas e trabalhadores sobre a crescente cobrança por mais produtividade?

Dorival Gonçalves – De partida, quero alertar que – enquanto trabalhadores – não podemos perder a referência que vivemos na sociedade capitalista. Nesta, o capital sob suas diferentes formas se revela meio de produção sob o poder de uma classe social, os capitalistas. Estes, exercem o papel de organizar, controlar e distribuir toda a produção. A classe social que trabalha (os trabalhadores) por não ter os meios para produzir para si, se apresenta socialmente no mercado, como mercadoria força de trabalho, vendendo a sua capacidade de trabalho aos capitalistas em troca de salários para a obtenção de mercadorias necessárias a sua reprodução como trabalhadores. Os capitalistas, como detentores do capital, têm o poder para comprar os meios de produção e a força de trabalho. Por isso, organizam a produção de modo que a força de trabalho em interação com os meios de produção – isto é, pelo seu uso na produção – seja capaz de, no período trabalho transferir o valor dos meios de produção, bem como, gerar o valor necessário para a reprodução da força de trabalho (salários), e ainda, um valor excedente denominado na sociedade capitalista como o “lucro do capital”. Portanto, o aumento da lucratividade do capital na produção depende diretamente do pagamento de menores salários e da maior produtividade do trabalho dos trabalhadores. Assim, a aumento da produtividade que as empresas perseguem tem por finalidade aumentar os excedentes sob o controle do capital, ou seja, aumentando os lucros, e não como excedentes para a satisfação dos trabalhadores. Por isso, os objetivos do capital, isto é, das empresas estão sempre em contradição com os objetivos dos trabalhadores. Para melhor compreender os argumentos aqui apresentados, convido os trabalhadores da indústria de eletricidade, a uma análise dos dados das condições de trabalho e do grau de mobilização sindical dos trabalhadores na atualidade, confrontando, os dados dos trabalhadores das empresas estatais, empresas privadas e empresas terceirizadas. Certamente, identificarão que as melhores condições de trabalho (salários, grau de intensidade de trabalho, etc.) estão presentes onde os trabalhadores apresentam maior capacidade de luta, ou seja, nas empresas estatais.


Energia Alerta – Sendo a nossa matriz energética essencialmente hidráulica, o valor da tarifa é justo?

Dorival Gonçalves – Suponho que a sua pergunta procura discutir sobre como podemos explicar que no Brasil com uma matriz de produção de eletricidade sob o predomínio de hidrelétricas tem um preço tão elevado quando temos, por exemplo, de um lado, a França com matriz de eletricidade com 75% a partir de usinas nucleares, cujo custo de produção é cerca de duas vezes mais que das hidrelétricas, tem os preços de sua eletricidade – entre as várias categorias de consumidores – entre 10% a 30% menores que os preços praticados no Brasil, e, do outro lado, nos estados de Idaho e Washington dos EUA, cujas matrizes de produção de eletricidade são semelhantes à brasileira o preço da eletricidade está em torno de 40% do preço aqui definido. Na produção capitalista os preços das mercadorias são praticados aproximadamente de duas formas. Uma, como preço internacional, este preço está referenciado no custo de produção médio mais o lucro médio das unidades de produção no mundo, que independente do local em que as mercadorias são produzidas elas são vendidas em torno do mesmo preço, caso das commodities- minérios, produtos energéticos, boa parte dos tipos de grãos, entre outras mercadorias-. O preço Internacional se aproxima da forma denominada de preço teto (price-cap) utilizada na indústria de eletricidade. Esta é a que mais satisfaz aos interesses capitalistas, pois as empresas que se fixam em lugares cujos produtos têm o seu custo de produção abaixo do custo médio mundial desfrutam de lucros extraordinários. Outra, é a prática de preço referenciada no custo de produção próprio mais o lucro médio esperado sobre o capital investido na produção. Esta forma, conhecida como preço pelo custo do serviço, tem sido cada vez menos usada, pois não proporciona aos que produzem o acesso aos lucros extraordinários decorrentes da produtividade da cadeia. Então, se utilizamos o sentido idealista de justiça como a virtude que consiste em dar a cada um o que por direito lhe pertence, o preço da eletricidade aqui no mínimo deveria considerar os baixos custos de produção. Portanto, a metodologia a ser empregada no Brasil deveria ser a do “preço pelo custo do serviço”. Contudo, vale lembrar que em 1994, às vésperas da completa internacionalização da indústria de eletricidade brasileira, politicamente foi institucionalizado o preço internacional para a mercadoria eletricidade, especialmente, a do ambiente de contratação regulada. E, desde então, a quase totalidade das forças econômicas e políticas, com interesses na cadeia de produção de eletricidade brasileira, tem atuado institucionalmente no sentido de conservar o preço da eletricidade como commodity. Esta realidade evidencia que o direito ao “valor de uma tarifa justa” é antes de tudo um resultado da luta política.