A distância entre Macapá e Porto Alegre é a mesma que entre Lisboa e Helsinque. Pois os brasileiros foram capazes de construir um Sistema Interligado Nacional que cobre um território comparável a Europa, um prodígio da engenharia, os vastos recursos energéticos do país. Construímos uma das matrizes elétricas mais renováveis do mundo, somos o segundo maior gerador de energia hidrelétrica do planeta e temos potencial para ampliar ainda mais nosso acervo de hidrelétricas e, também, de usinas eólicas e solares, não necessitando, em absoluto, agregar mais energia de origem fóssil, cara e poluente.

Pois é esse admirável sistema, construído num território abundante em recursos, que mais uma vez está atravessando uma grave crise, que pode resultar catastrófica para o país.

O termo “crise hídrica” já entrou no trendtopics do noticiário. O Ministro das Minas e Energia ocupou cadeia nacional de televisão, por duas vezes, para comunicar à sociedade que estávamos atravessando a pior estiagem em 91 anos, que todos deveriam colaborar, que não haveria racionamento etc. Depois de cada aparição do ministro veio, já no dia seguinte, um reajuste na conta de energia dos brasileiros.

No momento em que esse texto é publicado o nível dos reservatórios das regiões Sudeste e Centro Oeste, responsáveis por mais de 70% da capacidade de armazenamento do país estava abaixo dos 18% e a previsão do Operador Nacional do Sistema é que cheguemos ao final do mês de novembro de 2021 com uma sobra de potência de míseros 958 MW. Isso já considerando a margem de reserva girante, a flexibilização das margens de segurança do sistema de transmissão e o acréscimo de 5,5 GW de potência no sistema, nada menos do que 7,5% de toda a carga média diária do País (1).

Nada pode dar errado nesse cenário, se qualquer uma dessas premissas falhar, o resultado será o colapso do sistema e blackouts diários, controlados ou não, com todas as trágicas consequências na economia, na qualidade de vida e na segurança das pessoas que isso pode causar.

Crise hídrica ou crise energética?

Primeiramente é preciso dar o nome certo ao que se passa. Não se trata de uma crise hídrica apenas, mas principalmente de uma Crise Energética. É verdade que o país atravessa um período de intensa estiagem nas regiões Sudeste e Centro Oeste, mas o sistema elétrico brasileiro foi projetado para ser capaz de suportar períodos de escassez de água como o atual.

No Gráfico abaixo estão representadas as variações da Energia Natural Afluente (ENA) Bruta, comparativamente à Média de Longo Termo, para as duas principais bacias das regiões Sudeste e Centro Oeste, dos rios Paranaíba e Grande. Como se vê, entre 2014 e 2015 também houve crise hídrica severa nessas duas bacias.

Além disso, entre 2014 e 2015 a ENA Bruta das bacias dos rios São Francisco e Tocantins, onde estão instaladas Usinas Hidrelétricas (UHEs) importantíssimas como Sobradinho, Xingó, Complexo de Paulo Afonso e Tucuruí, estavam em situação até pior do que a atual.Há que se somar a isso o fato de que de 2015 para cá a UHE Belo Monte, nada menos que a maior hidrelétrica genuinamente nacional, com 11.233 MW, entrou totalmente em operação, melhorando as condições de suprimento energético do país.

Crise de 2001 x crise de 2021

Diante da severa crise energética desse 2021, não há como evitar comparações com outra crise, o “apagão” de 2001, o maior racionamento de energia de um país em tempos de paz. Nesses 20 anos muita coisa mudou. A capacidade instalada em MWs mais que dobrou, o sistema de transmissão foi reforçado, tornando possível um maior intercâmbio energético entre as diversas regiões do país e nossa dependência da hidroeletricidade caiu de 85% para 65%.

Ao assumir o governo em 2003, ainda com a crise do “apagão” muito viva na memória dos brasileiros, o presidente Lula deu início a um robusto programa de investimentos no setor elétrico. UHEs de grande porte como Belo Monte, Santo Antônio, Jirau, Teles Pires, além de diversos parques eólicos, termelétricas e de importantes empreendimentos de transmissão foram construídos, a maior parte, com destacada participação da Eletrobras. Esse crescimento da infraestrutura se deu concomitantemente a um período de forte crescimento econômico e inclusão de milhões de brasileiros no sistema elétrico, como o programa Luz para Todos. Mesmo assim, não se atravessou risco de falta de energia como agora.

Causas da crise energética

É verdade que a estiagem é severa e os próprios gráficos mostrados acima demonstram que desde 2013 o país vive um período prolongado de chuvas abaixo da média histórica. É muito provável (mais estudos precisam ser feitos) que o desmatamento na Amazônia esteja diminuindo a intensidade do corredor de umidade que vem do Norte para o centro Sul do país, reduzindo as precipitações nessa região. Porém, ainda que o desmatamento da Amazônia traga consequências bastante negativas para o país e deva ser firmemente combatido, é requisito do sistema elétrico brasileiro e responsabilidade, em última instância, do poder executivo federal, garantir que este sistema possa suportar criseshídricas como a atual.

Portanto, ainda que a estiagem possa ser considerada como desencadeante da crise energética, ela, por si só, não pode ser considerada causa. País nenhum do mundo pode confiar sua segurança energética inteiramente aos humores do clima e por isso mesmo, durante décadas, o Brasil construiu um sistema que, mesmo baseado na hidroeletricidade, contava com reservatórios de regularização capazes de conferir resiliência ao mesmo. Ou seja, é dever do estado, em última instância, garantir que uma crise hídrica não se converta em uma crise energética.

Já que sabemos que a falta de chuvas, por si só, não é e nem poderia ser a causa principal da crise energética, então quais seriam?

  1. Falta de investimentos: O Brasil é um país em desenvolvimento, apesar de possuir sexta maior população do planeta, estamos no99° lugar dentre os maiores consumos de eletricidade per capta do mundo. É inegável que há uma relação direta entre a qualidade de vida e o consumo de energia elétrica nos diversos países, portanto, se o Brasil pretende tornar-se um país desenvolvido e melhorar a qualidade de vida de seu povo, terá que aumentar a oferta de energia elétrica.

De fato, percebe-se que o consumo de energia elétrica no Brasil cresce, quase sempre, mais do que a população e o próprio PIB.

Essa necessidade de constante incremento na capacidade de oferta de energia faz com que não se possa pensar no sistema elétrico brasileiro como uma estrutura estática. A expansão é variável fundamental e no setor elétrico o planejamento dessa expansão é ainda mais crítico do que nos demais setores da economia.

Trata-se de um “produto” indispensável para praticamente todos outros ramos da economia, praticamente insubstituível, além de ser essencial para a qualidade de vida das famílias e que precisa estar disponível a todo instante na exata proporção da demanda. Ou seja, no setor elétrico simplesmente não pode haver déficit, sob pena de colapso, também conhecido como blackout.

É justamente por ser tão estratégico e sensível, que o setor elétrico, em qualquer país do mundo, é responsabilidade do estado, sendo operado e mantido diretamente por este ou através de concessão a empresas privadas.

Dentre as 15 maiores economias do mundo, 11 possuem destacada presença de empresas estatais no setor elétrico e dentre os 10 países que mais geram energia hidrelétrica no mundo, apenas em um deles esse setor não é majoritariamente estatal. Essa preponderância ainda maior de empresas estatais na hidroeletricidade se explica pelo uso múltiplo das águas e por serem empreendimentos complexos, com largo prazo de maturação e retorno.

Mesmo não sendo mais hegemônica no setor elétrico, a Eletrobras ainda é a maior empresa de energia elétrica do Brasil e da América Latina. Porém, desde 2016, quando Temer assumiu a presidência da república, a empresa foi colocada como prioridade em seu projeto de privatização.

Desde lá, a Eletrobras praticamente parou de investir na expansão e, ao contrário, passou a alienar participações suas em diversos empreendimentos feitos em parceria com a iniciativa privada. A Eletrobras passou a ter como principal objetivo, não mais a contribuição com a garantia de suprimento, a universalização do serviço e a modicidade tarifária, mas apenas a maximização dos dividendos pagosaos acionistas e a preparação para a privatização.

Nas tabelas abaixo fica claro que quanto mais a Eletrobras se fortalece economicamente, menos ela investe e mais distribui dividendos a seus acionistas, inclusive os privados.

Os resultados do primeiro semestre de 2021 apenas conformam essa tendência. A empresa fechou o período com nada menos que R$ 20 bilhões em caixa e uma alavancagem de apenas 1,0!

A Eletrobras não é um ator irrelevante no setor elétrico brasileiro. Mesmo ausente da expansão nos últimos anos, a empresa ainda detém cerca de 30% da capacidade instalada de geração, 43% das linhas de transmissão, 45% da capacidade de geração hidrelétrica (a base do sistema brasileiro) e nada menos que 52% da capacidade de armazenamento de nossos reservatórios.

Mesmo considerando a redução dos investimentos a partir de 2016, a Eletrobras investiu, em valores atualizados, R$ 100 bilhões entre 2004 e 2019 (1/4 de tudo que foi investido nesse período).Aliás, a Eletrobras foi responsável por alavancar os investimentos que possibilitaram a superação da crise que levou ao racionamento de 2001.

Os gráficos abaixo demonstram que justamente no período em que a Eletrobras diminuiu seus investimentos, o setor como um todo também diminuiu, ou seja, se a Eletrobras tivesse utilizado os recursos disponíveis para investir, ao invés de apenas pagar dividendos, possivelmente não estaríamos atravessando essa crise energética.

No que diz respeito à Eletrobras, a crise atual guarda grande semelhança com o racionamento de 2001. Em 1995 FHC assumiu o governo e no mesmo ano colocou a Eletrobras no Programa Nacional de Desestatização (PND), impedindo a empresa de realizar novos investimentos. A expectativa era que a iniciativa privada fosse capaz de sozinha, garantir a expansão necessária.

Não foi o que aconteceu. A iniciativa privada não investiu, preferiu aguardar a privatização da Eletrobras e sem investimento público nem privado, bastou uma seca um pouco mais severapara que o sistema entrasse em colapso, obrigando o país a passar por um racionamento que durou mais de um ano e que trouxe severos prejuízos.

Da mesma forma que naquele período, a decisão de privatizar a Eletrobras, com a consequente saída da empresa do processo de expansão, é um dos fatores responsáveis pela Crise Energética atual. Porém, quando ficou claro para o governo FHC que o país atravessaria uma séria crise energética, este teve ao menos a responsabilidade de suspender o processo de privatização da empresa.

Já o governo Bolsonaro, que além de incompetente não tem absolutamente nenhuma responsabilidade com o país, mantém como prioridade da sua atuação no setor elétrico a privatização da Eletrobras. O ministro Almirante Bento Albuquerque, não demonstra nenhum compromisso com o bem-estar de seu povo, mas está totalmente comprometido com a privatização da empresa, que além de um atentado contra a soberania nacional, a economia popular e a segurança energética do país, é uma grande negociata, o crime do século.

  1. Escassez provocada: Como visto anteriormente, o setor elétrico não é um setor econômico qualquer. Além de a eletricidade ser de uso universal e praticamente insubstituível, o setor possui fortes características de monopólio natural. Por isso, em todos os países precisa ser fortemente regulado, ou mesmo submetido a intervenção direta do estado, na forma de empresas estatais.

No Brasil, cerca de 65% da energia consumida provêm das hidrelétricas. Essa fonte tem características ainda mais monopolísticas, pois as usinas hidrelétricas operam principalmente na forma de cascatas, com a mesma água contribuindo para a geração de energia em todas as usinas de uma determinada bacia hidrográfica. Além disso, a capacidade de geração das usinas depende da hidrologia, que como se sabe, não responde aos sinais de mercado.

Entretanto, o país vem passando por uma importante transformação em sua matriz elétrica nos últimos anos. Apesar de a matriz elétrica brasileira se manter majoritariamente renovável, graças principalmente ao crescimento da participação da energia eólica, percebe-se uma tendência de aumento da presença de capacidade instalada de fontes baseadas em combustíveis fósseis (principalmente gás natural) no sistema elétrico brasileiro, vis a vis a diminuição da participação da hidroeletricidade.

Essa comparação é pertinente, pois tanto o gás natural quanto a hidroeletricidade são fontes de energia firmes, ao contrário da geração eólica e solar, que são intermitentes. Portanto, há uma clara tendência de mudança da base do sistema elétrico brasileiro, da hidroeletricidade para a termoeletricidade baseada no Gás natural.

A aprovação da Lei 14.182/21 da privatização da Eletrobras, com a obrigação de contratação de mais 8.000 MW de termelétricas a gás com 70% de inflexibilidade, apenas reforça essa tendência.

Há várias causas para essa substituição das hidrelétricas por termelétricas como energia firme. Toda a campanha contra a construção de hidrelétricas e as restrições ambientais dela derivadas tornaram o ambiente para a expansão da hidroeletricidade extremamente hostil no país. Issoapesardo Brasil contar com grande potencial para a expansão dessa fonte, sem falar nas Usinas Hidrelétricas Reversíveis (UHRs) ou mesmo na modernização e repotenciação do parque de geração existente.

Outra razão é todo o poderoso lobby do gás que vem atuando no Brasil. Durante o processo de tramitação do projeto de privatização da Eletrobras no congresso nacional isso ficou bem evidente.

A questão das termelétricas a gás nem estava na proposta original da Medida Provisória (MP) 1.031/21, enviada pelo executivo. Foi, porém, incluída pelo relator e adicionada em negociações de pura barganha, tanto na câmara como no senado.

Uma das coisas que mais chamou atenção no texto aprovado foi a determinação da localização dessas Usinas Termelétricas (UTEs) em locais distantes da rede de gasodutos existente e o fato de serem usinas inflexíveis.

Essa localização das termelétricas longe da rede de gasodutos forçará a expansão da mesma em alguns casos, beneficiando as concessionárias de distribuição de gás nos estados. Em outros casos, o mais provável é que se utilize Gás Natural Liquefeito (GNL) importado, favorecendo os fornecedores internacionais desse insumo, em especial os EUA.

Tudo isso apenas vai encarecer ainda mais a energia no Brasil. Mesmo partindo da hipótese de que seja necessária a contratação dessas termelétricas, o mais lógico e econômico seria a sua instalação próxima às reservas do pré-sal.

O gráfico acima, do Plano Decenal de Expansão (PDE) de energia da Empresa de Pesquisa Energética (EPE) para o horizonte 2020-2030, deixa clara a previsão de expansão da geração termelétrica no país, baseada principalmente no gás natural. Porém, para a EPE essas UTEs deveriam ser flexíveis, pois terão que ser capazes de modular rapidamente a oferta de energia, de modo a compensar a inflexibilidade e a intermitência de muitas fontes renováveis, como a eólica e a solar, que também deve se expandir no período.

Mas não foi isso o aprovado pelo congresso. Foi determinada a contratação de 8.000 MW de UTEs a gás, basicamente inflexíveis. Isso num sistema que já conta com quase 75% de inflexibilidade, como é o caso do Sistema Interligado Nacional (SIN) trará ainda mais problemas para a operação e custos para o consumidor.

Não se pode contar apenas com energia eólica e solar para a expansão do Sistema Elétrico Brasileiro (SEB), por serem essas fontes intermitentes é necessária a complementação de fontes de energia que sejam firmes e que possam ter a flexibilidade necessária para compensar essa variação e poder responder instantaneamente também às variações da demanda.

A melhor fonte para essa finalidade é a hidrelétrica, de preferência as com reservatórios, pois somam flexibilidade com capacidade de armazenamento de energia. Mas, na falta de novas hidrelétricas para cumprirem esse papel, as usinas termelétricas também poderiam fazê-lo, com menos eficiência e bem mais caro, mas poderiam. Entretanto, essas termelétricas aprovadas na lei 14.182/21 são inflexíveis, operarão na base, o que é bom para elas, pois irão faturar mais, mas é péssimo para o consumidor e para o sistema elétrico como um todo, que ficará ainda mais inflexível e caro.

Como se não bastasse todo esse favorecimento às termelétricas, a atual crise energética revela muitos indícios de que uma operação visando a maximização das taxas de lucro desse setor tenha sido uma das causas da crise atual.

O ano de 2020 foi atípico em todos os campos e no setor elétrico não foi diferente. A pandemia levou a uma redução, nunca vista, no consumo de energia elétrica em alguns meses daquele ano.

Houve queda abrupta nos meses de abril, maio e julho, auge do período de isolamento. Porém, ao longo do ano o consumo se recuperou e fechou o ano com recuo de apenas 1%, quando comparado a 2019 (a contração do PIB foi de 4,1%). Mas nesses meses de forte redução do consumo o preço da energia desabou, as distribuidoras ficaram descontratadas e havia o temor de que o setor elétrico quebrasse. Foi necessária a intervenção do governo, através da chamada “conta covid” (paga pelo consumidor, claro) para dar liquidez às distribuidoras e evitar a bancarrota de muitas empresas do setor. No fim das contas a crise não foi tão severa quanto se previa e as empresas do setor fecharam seus balanços com lucros expressivos.

É interessante notar, que a queda do preço da energia em parte do ano de 2020 (chegou ao valor mínimo do PLD, R$ 39,68/MWh) (2) se deu por redução da demanda, já que o GSF (Generation Scale Factor) ruim, de 0,82 (3) demonstrava que já havia escassez hídrica nos reservatórios mesmo no meio de 2020 (quanto menor o GSF, maior a escassez hídrica).

Como houve queda na demanda, o período seco de 2020 (de maio a novembro) passou sem maiores sobressaltos. Porém o período úmido (de dezembro a abril) de 2020 / 2021 foi muito ruim desde o começo. Desde setembro o país estava sob a influência do fenômeno La Niña, que reduz as precipitações nas regiões Sudeste e Centro-Oeste, onde está localizada 70% da capacidade de armazenamento de nossos reservatórios.

Ou seja, não se aproveitou a redução do consumo em abril, maio e junho de 2020 para poupar água dos reservatórios, que chegaram ao período úmido já bastante deplecionados e já se sabia que as chuvas viriam abaixo da média.

Num cenário assim, era de se esperar que as autoridades do setor tomassem imediatamente todas as medidas necessárias para evitar o desabastecimento já no segundo semestre de 2020. Mas o que aconteceu foi que o despacho das hidrelétricas continuou em níveis elevados, mesmo com todos esses sinais negativos.

O gráfico acima demonstra isso. Foi apenas em maio de 2021, quando a crise hídrica já estava caracterizada como a maior dos últimos 91 anos (Segundo o Ministro das Minas e Energia) que o ONS reduziu o despacho das hidrelétricas e aumentou consideravelmente a geração das UTEs, inclusive as mais caras.

O despacho de energia segue uma ordem de mérito, onde são despachadas primeiro as usinas mais baratas e depois as mais caras, visando minimizar o custo para o consumidor. O ONS deve, porém, zelar pela segurança do sistema, mantendo reduzido o risco de escassez, mesmo que para isso seja necessário despachar energia mais cara (termelétrica por exemplo) para poupar os reservatórios.

Se o ONS tivesse despachado as termelétricas mais baratas no período úmido de 2020 / 2021, poupando água dos reservatórios, haveria algum aumento nas tarifas para o consumidor, mas, provavelmente, não estaríamos na situação em que nos encontramos agora, com o risco de desabastecimento tão alto que obriga o operador a despachar mesmo as termelétricas mais caras, implicando em um tarifaço que já elevou a conta de luz média do Ambiente de Contratação Regulada (ACR) em quase 30% esse ano. O Brasil já possui a segunda tarifa de energia mais cara do mundo e deve fechar esse ano como campeão mundial da energia cara.

O Preço de Liquidação de Diferenças (PLD) que em abril de 2020 chegou ao seu valor mínimo de R$ 39,68/MWh, está desde junho em seu patamar máximo possível de R$ 583,88/MWh(4). Esse é apenas um preço de referência para o mercado livre, porém, para evitar o desabastecimento estão sendo despachadas usinas vendendo energia a inacreditáveis R$ 3.091,73/MWh (5)! Só a título de comparação, algumas hidrelétricas da Eletrobras, vendem energia a pouco mais de R$ 50/MWh.

É evidente que a escassez levou à alta do preço da energia e é evidente que isso maximiza o lucro das empresas que vendem energia. Além disso, muitas termelétricas que recebiam apenas para permanecerem como backup do sistema, justamente por serem muito caras, estão agora gerando na base e lucrando como nunca. Para quem tem energia disponível, não há crise, muito pelo contrário.

Toda essa diferença de preço vai para a conta do consumidor do ACR através das bandeiras tarifárias e na revisão tarifária anual das distribuidoras.

É importante destacar que nem todos os consumidores estão sofrendo com a escassez de energia. Os grandes consumidores, que já tem contratos de energia bilaterais, firmados no Ambiente de Contratação Livre (ACL) não pagam as bandeiras tarifárias e ainda ganharam do governo o Programa de Resposta da Demanda, na qual esses grandes consumidores receberão para deslocarem suas atividades para fora do horário de ponta. Quem pagará essa conta? Todos os consumidores, inclusive os residenciais, claro.

Crise para uns, oportunidades para outros

Fica claro, portanto, que essa é uma crise fabricada, pela sanha privatista dos governos Temer/Bolsonaro, pela consequente falta de investimentos, pela introdução de cada vez mais energia cara e poluente em nossa matriz elétrica, na contramão da transição energética mundial e na preocupação em manter uma escassez tal, que permita a manutenção em níveis elevados das margens de lucro das empresas do setor elétrico.

Ou seja, nem todos sofrem com essa crise, pelo menos por enquanto. Mas o próprio governo reconhece que há uma a possibilidade, cada vez maior, da situação sair do controle. O colapso do sistema, com blackouts generalizados, rodízios de energia, com desligamentos diários ou mesmo um racionamento severo tem potencial catastrófico para a já combalida economia brasileira.

Por outro lado, a resposta do governo de negação da possibilidade de um racionamento, ainda que suave, e a opção por encarecer a conta de energia das famílias e pequenas empresas é a opção mais injusta no momento.

O tarifaço da energia implode o orçamento das famílias dos trabalhadores e repercute no preço de praticamente todos os produtos básicos, pressionando ainda mais a inflação. O aumento do preço da energia elétrica não vem sozinho, vem num contexto de aumento do preço do gás de cozinha, dos combustíveis e dos alimentos. Trata-se de uma verdadeira crise humanitária para milhões de famílias.

Melhor seria que o governo aplicasse algum tipo de racionamento compulsório moderado sobre determinados setores, de acordo com sua renda, livrando as famílias mais pobres, que não têm praticamente onde reduzir mais.

Além disso, é preciso mudar imediatamente a atual política energética privatista e mercantilista, suspender a privatização da Eletrobras e utilizar os recursos nela disponíveis para um amplo programa de investimentos no setor.

Do jeito que está, o racionamento disfarçado, via aumento tarifário é injusto, não vai à raiz do problema e pode não ser suficiente para evitar o colapso do sistema, apenas tornando este mais grave e de mais difícil superação.

Ikaro Chaves Barreto de Sousa é diretor da Associação dos Engenheiros e Técnicos do Sistema Eletrobras (AESEL)

Referências

Publicado originalmente no site https://pt.org.br/