O apagão no Amapá nos mostra que problemas da estrutura de governança do sistema podem se traduzir em problemas operacionais. Ao contrário do que é amplamente sugerido, essas questões não são sanadas com privatizações

O apagão que deixou mais de 765 mil pessoas do Amapá sem luz revela uma série de falhas institucionais do setor elétrico brasileiro. Foram 22 dias sem energia, prejudicando a distribuição de água e paralisando serviços em 90% do estado — tudo isso em meio à pandemia do novo coronavírus.

Como sabemos, o apagão começou após um incêndio atingir um transformador de uma subestação de energia de Macapá por volta das 21h do dia 3 de novembro. O problema levou ao desligamento automático do abastecimento do estado.

Dos três transformadores da subestação, um foi atingido diretamente pelo fogo e o segundo foi danificado pelo incêndio. Na conta, sobraria um transformador reserva, mas ele não estava em funcionamento desde dezembro de 2019, e passava por manutenção.

A gravidade das consequências do evento que desconectou o estado do Amapá da vida moderna deve servir de alerta para a essencialidade do acesso à eletricidade e da importância de se ter um sistema elétrico robusto que atenda a toda população.

O acidente aconteceu em meio às discussões sobre a privatização da Eletrobras, empresa pública de capital aberto, que foi responsável pela recomposição do fornecimento de energia ao Amapá, graças à expertise de seus técnicos e à sua escala de atuação.

A introdução da concorrência no setor elétrico brasileiro, em 1995, veio seguindo o lema “concorrência onde for possível e regulação onde for necessário”. Assim, foram separadas as atividades de geração, transmissão, distribuição e comercialização, a serem exercidas por diferentes agentes. Os serviços de rede, por serem monopólios naturais, teriam tarifa regulada e haveria competição no segmento da geração e comercialização.

As mudanças da estrutura de propriedade vieram acompanhadas da criação de diversas novas entidades que assumiram papéis até então exercidos pelo Estado. Assim, a Eletrobras, que era responsável pelas atividades de operação e pelo planejamento da expansão, perdeu essas funções para o ONS (Operador Nacional do Sistema) e para a EPE (Empresa de Pesquisa Energética), respectivamente. Foi criada uma agência de regulação independente, a Aneel (Agência Nacional de Energia Elétrica), responsável pela fiscalização técnica e pela determinação da estrutura das tarifas, entre outras atribuições, além de outros órgãos e conselhos. Esse conjunto de instituições deveria zelar para que a política energética elaborada pelo Ministério de Minas e Energia fosse aplicada e para que as empresas concessionárias garantissem a segurança de abastecimento e prestassem serviço de qualidade a preços módicos — elementos norteadores da política setorial.

AS ESPECIFICIDADES FÍSICAS DO SISTEMA DE ELETRICIDADE BRASILEIRO, DADAS POR SUA GEOGRAFIA E SUA DOTAÇÃO DE RECURSOS NATURAIS, PEDEM PLANEJAMENTO E OPERAÇÃO INTEGRADOS

O problema do Amapá é mais um exemplo de que a estrutura adotada não funciona como planejado. Houve falhas gravíssimas da parte da Aneel e do ONS. A agência tem se mostrado incapaz de cumprir suas obrigações de fiscalização técnica e se concentra na regulação tarifária, garantindo a remuneração dos ativos dos concessionários, mas sem cumprir o objetivo da modicidade tarifária para os usuários do mercado regulado, clientes cativos das distribuidoras. Há ainda inúmeros questionamentos sobre a independência da agência.

Aumentam no país a pobreza energética e a perda de competitividade da indústria relacionada aos altos preços da eletricidade. O ONS, por sua vez, responsável pelo despacho e fornecimento efetivo da eletricidade a partir das usinas geradoras e das linhas de transmissão que as conectam, sabia da fragilidade da subestação e nada fez.

Ambos os órgãos falharam no cumprimento de suas obrigações, pois haviam sido informados que o transformador que serviria de backup em caso de evento extraordinário, como o ocorrido, estava indisponível desde dezembro de 2019. Inicialmente, a empresa privada responsável pela subestação, a LMTE (Linhas de Macapá Transmissora de Energia), havia indicado o restabelecimento previsto para 20 de janeiro de 2020. Respeitando as regras do setor, pediu um adiamento dessa data duas vezes. Em ambas, teve sua solicitação atendida, expondo toda a população do Amapá ao acidente que ocorreu. A empresa procura se eximir de sua responsabilidade, definida no contrato de concessão, por meio das permissões de funcionamento que lhe foram concedidas.

Além disso, ao buscar os nomes dos proprietários da LMTE, informação essencial para que sejam responsabilizados e que tenham que arcar com as consequências do não cumprimento da prestação do serviço, descobre-se que se trata de um fundo de investimentos, com perfil de risco elevado, sem experiência no setor. Nenhum acionista é exposto. Ora, a responsabilização (accountability) constitui um elemento central ao respeito a contratos.

A decisão do Ministério de Minas e Energia que determinou que alguns custos e os gastos relacionados à geração emergencial contratada serão assumidos por todos os consumidores brasileiros aumenta a fragilidade dos contratos de concessão e incentiva a tomada de riscos ainda maiores pelos concessionários. Assim, caímos diretamente em outra questão considerada crucial para o bom funcionamento dos mercados de eletricidade abertos à concorrência, o enforcement (a execução) dos contratos. Ao não ter que assumir as consequências econômicas e sociais por não prestar o serviço previsto no contrato de concessão, a empresa não assume os riscos de seu negócio, enquanto os contratos continuam lhe dando direito a um fluxo de receita garantida a longo prazo. Não surpreende que o leilão de expansão da rede de transmissão realizado neste 17 de dezembro pela Aneel tenha atraído tantos interessados.

As falhas discutidas fazem parte de um problema maior de estruturação do sistema elétrico brasileiro e de seu mercado de eletricidade. Os agentes privados detentores dos ativos não assumem os riscos de suas tomadas de decisão e estes são transferidos aos consumidores brasileiros, sobretudo os cativos, ameaçando a segurança de abastecimento.

Além disso, já está claro que as especificidades físicas do sistema de eletricidade brasileiro, dadas por sua geografia e sua dotação de recursos naturais, pedem planejamento e operação integrados, de forma a tirar partido dos diferentes regimes climáticos e de suas bacias hidrográficas. A fragmentação adotada complexifica a coordenação dos diferentes elementos do sistema quando deveríamos estar estruturando nossa transição energética. É hora de rediscutir o modelo do setor elétrico brasileiro, não a privatização da Eletrobras.

Clarice Ferraz é professora da escola de química da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), pesquisadora associada do Grupo de Economia da Energia da instituição e diretora do Instituto Ilumina. É também doutora pela Universidade de Genebra.

Via https://www.nexojornal.com.br