Por Roberto Pereira D’Araujo

A crise do Covid 19 deveria nos causar uma reflexão muito além das estratégicas ligadas à infectologia. Afinal, a economia brasileira parece estar “infectada” de algo destrutivo há muitos anos.

O que se pode pensar de um país onde um ministro da economia declara que a resposta para enfrentar a crise do Corona vírus é vender uma estatal do setor elétrico? Isso é alguma piada ou uma manifestação de piora do quadro do país?

Talvez algum assessor do ministro brasileiro tenha dito que o sistema de transmissão em alta tensão da Eletrobras tem um tal de efeito “corona”. Desculpem a piada que os engenheiros elétricos entendem, mas, a falta de projeto desse governo provoca a ironia.

Sei que existem muitos que acham que a Eletrobras não serve para nada, consome dinheiro público, é cabide de emprego e é incapaz de atuar na economia brasileira. É a nossa tradição destrutiva, bem ilustrada pela demolição do palácio do Monroe, um monumento histórico no Rio de Janeiro.

Mas o que é triste é a desinformação do povo brasileiro. Na verdade, a empresa paga dividendos ao seu acionista majoritário, justamente os governos que veem fragilizando a economia! Também esqueceram que, se não fosse a Eletrobras não teríamos nada! Nem a indústria que, agora, estamos destruindo! Para os desinformados, a empresa que fez essa fantástica transformação, lamentavelmente, é a mesma, que, ao longo de 25 anos, foi usada e abusada pelos últimos 5 governos consecutivos para consertar os problemas da bagunça que “o mercado” causou nas nossas tarifas.

As funções do Operador Nacional do Sistema (ONS), Câmara de Comercialização de Energia Elétrica (CCEE), Empresa de Pesquisa Energética (EPE) e parte de que a Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL) exercem, eram atributos da Eletrobras. Reparem que todos esses papéis foram exercidos com sucesso pela Eletrobras!

Ok, a Eletrobras não é mais aquela e, então, vamos vender?? Nada de repensar o que é uma empresa de estado? Nem pensar blindá-lá de arroubos políticos? Nem cogitar protegê-la de políticas suicidas, muito piores do que os crimes de corrupção? Primeiro, que tal dar uma olhada nos países que são os líderes da matriz hidroelétrica no mundo? China, Estados Unidos, Canadá, Brasil, Suécia, Noruega, Rússia e Índia. Qual desses países privatizou seu setor elétrico? Nenhum! O Brasil vai ser o único? Realmente, perdemos a vergonha do que é ser um país idiota.

O ridículo se amplia quando parte dos favoráveis a vender tudo reclamam da tarifa brasileira. Acham cara e pensam que a culpa é da Eletrobras, pois imaginam que o setor elétrico é estatal. Acreditem ou não, já somos de maioria privada em todas as etapas do sistema, geração, transmissão e distribuição. Portanto, parabéns à privatização e à mercantilização! Conseguiram dobrar a tarifa em valores reais!

O dólar já tangencia cinco reais e, se você colocar sua tarifa na moeda americana, vai parecer que temos um preço baratinho. Ledo engano. Se a tarifa for comparada com uma cesta de produtos e serviços de cada país, o Brasil tem a 3ª mais cara tarifa do planeta! E isso com 70% de hidroeletricidade! Dado da Agência Internacional de Energia!

Mas, como o vírus agiu para a Eletrobras ser destruída? Basta acompanhar a numeração na figura abaixo.

1 – Na década de 90, o festival de privatizações – que vendeu 80 estatais de todos os setores por US$ 106 bilhões (confiram, por favor) não conseguiu vender as distribuidoras estaduais de Alagoas, Piauí, Roraima, Rondônia, Acre. Faz o que? Despeja em cima da Eletrobras. A receita burra brasileira: Dá lucro? Privatiza! Dá prejuízo? A Eletrobras cuida. Notam alguma semelhança com os aeroportos?

2 – Em 1995 foi implantado o modelo mercantil imaginado pelo governo FHC, que, acreditem, “iria reduzir tarifa”! Foi o contrário! Aumentou tudo e ainda causou um racionamento de 25% em 2001. Os investimentos da Eletrobras foram cancelados pois ela seria privatizada. O capital privado, embevecido pela oferta de usinas prontas, não investiu. Racionamento! O consumo total se reduziu, pois, pasmem, os brasileiros perceberam que não poderiam consumir tanta energia. Imaginem! O consumo médio por domicílio não passa de 140 kWh/mês!

3 – A Eletrobras, apesar de ter contratos de venda mais baratos, foi descontratada! Claro! Quem tem coragem de incomodar o setor privado? Perdendo contratos a Eletrobras desliga suas usinas? Evidente que não! Hidroelétricas funcionam na base! E como a Eletrobras foi paga? Recebendo menos de R$ 20/MWh por mais de quatro anos por parte de sua energia (você paga mais de R$ 250/MWh, só a energia). Essa já foi outra política suicida contra a empresa. Atenção! Modelo FHC, mas Governo Lula! Ministra de Minas e Energia, Dilma!

3 – Quem se aproveitou da energia quase gratuita gerada pela Eletrobras? O povo pobre? Nada disso! Os grandes consumidores e comercializadores que migraram para o mercado livre com alguns subsídios explícitos e outros oclusos. Esse mercado simplesmente gerou fortunas e cresceu explosivamente. Hoje, 30% da energia consumida no país é comercializada nesse nicho.

4 – Durante 10 anos (2003 – 2012), em parte pelo sacrifício da Eletrobras e, em parte, pelas hidrologias úmidas, esse mercado livre viveu de especulação. Para que fazer contratos de longo prazo que sustentem a construção de usinas que gerem energia para esse conjunto de afortunados, se os preços de curto prazo são quase um presente? Zero usinas construídas para atendê-los.

5 – Bem, se 30% dos consumidores não alavancam novos investimentos, o que fazer? Contratam-se térmicas caras e energia de “reserva”. Traduzindo, custos! Também se usa a Eletrobras para fazer parcerias com o setor privado onde ela é minoritária. A primeira pergunta que uma sociedade atenta deveria fazer é: Sem a Eletrobras e sem o BNDES, o setor privado teria investido? Já viram alguém perguntar isso?

6 – Evidentemente, depois de tantos tiros no pé, a Eletrobras tinha custos de capital maiores do que os parceiros privados. Assim, além oferecer a estrutura administrativa, as taxas de retorno dos projetos não cobriam o custo de capital da estatal. O vírus se ampliava na empresa. Quem não sabia disso?? Infelizmente, a maioria dos nossos órgãos de mídia não toca nesse assunto e o vírus se alastra. Mais uma vez ninguém se importa se o setor privado demonstra sua dependência do estado!

7 – Enquanto isso a tarifa continuava subindo. Por uma “coincidência”, a FIESP faz uma campanha midiática culpando a Eletrobras pelos altos preços das tarifas. Não é que, meses depois, o governo Dilma atende a FIESP e culpa as usinas antigas pelo resultado das contas de luz? Em qualquer país sério e atento à realidade, tal decisão seria entendida como uma piada, pois nenhum diagnóstico prévio foi feito para identificar as razões de tal explosão de preços. Mais uma vez, a parte privada do setor agradece o esquecimento!

8 – Em 2012, atabalhoadamente, sem estudos que suportassem a “teoria”, o governo Dilma impôs à Eletrobras uma redução tarifária violenta. Para se ter uma ideia dos valores, a nota técnica da ANEEL 385/2012-SER/SRG/ANEEL estipulava apenas R$ 7,67/MWh para as usinas da Eletrobras. Evidentemente, a empresa perdeu 70% do seu valor de bolsa de um dia para o seguinte. Tal estratégia criou custos antes inexistentes, pois indenizações tiveram que ser contabilizadas!

9 – Mas, o que é realmente grave é que foi imposto a separação dos custos das usinas e linhas da administração da empresa. Isso significa que todas as atividades gerenciais da empresa ficaram “órfãs” da receita desses ativos. Assim, o peso da administração central passou a ser enorme, uma conveniente situação para quem quer criticar a empresa de ineficiência, “cabides” de emprego e propor sua privatização.

10 – Como golpe final, a atual gerência da empresa, nessa posição desde o governo Temer, (vice presidente no governo Dilma!), resolve acusar a empresa de ineficiente e os empregados de vagabundos. Se a desinformada sociedade brasileira se interessasse em verificar o que proclama o “vírus”, veria que a Eletrobras, mesmo antes da venda das distribuidoras empurradas goela abaixo no item 1, tinha menos empregados por MW instalado do que a EDF na França, a SSE na Inglaterra, a Duke nos States, a Iberdrola na Espanha, só para citar alguns exemplos. Para um país de dimensões continentais é um assombro!

10 – A “limpeza” do corpo técnico da empresa foi feita de forma linear. Não interessava se quem saísse do quadro fosse, por exemplo, um especialista em, digamos o efeito “corona” nas linhas de transmissão. A intenção foi praticamente deixar um escritório central e muitas usinas e linhas produzindo. Hoje a Eletrobras têm um índice empregado/MW que é menos da metade das outras empresas. Que maravilha para quem quer comprar uma receita garantida! Ainda mais com o US$ = R$ 5! Enquanto isso, o modelo virulento continuou a produzir custos futuros. Déficits de geração das usinas hidroelétricas bilionários que, adivinhem quem vai pagar?

Parece ou não uma conspiração? Preparem-se! Não é só o Corona Virus que está contaminando o Brasil. Que esse período de quarentena sirva para uma reflexão!

Todos os valores quantitativos mencionados aqui já foram publicados na página do ILUMINA.

Via https://www.ilumina.org.br/