Isabela Almeida adorava fazer promessas. A mais importante de todas nos 18 anos que viveu foi ser doadora de órgãos. “Ela sempre disse que, caso alguma coisa acontecesse com ela, queria que retirassem o máximo possível de órgãos”, relembra o pai, André Almeida, 45 anos. No último dia de carnaval, “alguma coisa” aconteceu. Isabela ficou gravemente ferida após sofrer um acidente de carro próximo a Cocalzinho (GO), a cerca de 100 quilômetros de Brasília, e foi internada em Anápolis. Passados sete dias, a jovem teve a morte cerebral constatada. A família fez de tudo para que ela permanecesse em condições de doar todos os órgãos aproveitáveis. Goiânia foi descartada para a retirada dos órgãos porque a burocracia aumentaria em dois dias a espera para velar a jovem. Optou-se pela volta para casa. Em Brasília, a frustração: apenas os rins e as córneas de Isabela foram retirados.

A decepção dos familiares de Isabela é produto de um cenário que o Distrito Federal e o Brasil terão de lutar para reverter. A capital federal realiza apenas três modalidades de transplantes: coração, córneas e rins. Desde 2008, o DF está descredenciado pelo Ministério da Saúde para realizar transplantes de fígado. Ainda que o cenário de Brasília tenha apresentado melhoras em relação aos anos anteriores — só em fevereiro, três pacientes receberam novos corações, o equivalente ao total de procedimentos feitos em 2010 — , a burocracia e a falta de infraestrutura e logística ameaçam o aproveitamento de órgãos que podem salvar vidas. E vai além: dificulta a situação de quem quer doar os órgãos, como os familiares de Isabela.

O drama da família Almeida começou na quarta-feira de cinzas, 9 de março, quando Isabela sofreu um acidente de carro na altura de Cocalzinho. A estudante estava no banco de trás, não usava cinto de segurança e foi arremessada, causando um grave traumatismo craniano. Como precisava de cuidados intensivos, foi levada para a UTI do Hospital Evangélico Goiano de Anápolis, onde ficou internada por uma semana. No sétimo dia, ela entrou em suspeita de morte cerebral.

O Ministério da Saúde adota um protocolo de confirmação de morte cerebral que consiste na realização de dois exames clínicos, sendo um necessariamente feito por um neurologista, e um de imagem. O intervalo entre cada procedimento deve ser de seis horas. O protocolo fechado é o início do processo de captação de órgãos. Quanto mais rápido o laudo é concluído, maiores são as chances de o transplante ser bem sucedido. No caso de Isabela, problemas de infraestrutura do hospital adiaram o fechamento do protocolo, iniciado na manhã de quinta-feira e fechado apenas na noite seguinte. Os exames clínicos foram feitos em um intervalo de 14 horas. O laudo do exame de imagem, que confirmou a morte cerebral, só foi concluído às 23h de sexta-feira.

Escolha
A família poderia ter escolhido Goiânia ou Brasília para que o desejo de Isabela fosse concretizado. “Até o último momento consideramos Goiânia, mas significaria prolongar em pelo menos dois dias nosso sofrimento. Seria ainda mais burocracia. Por isso, decidimos voltar com ela para Brasília”, diz o pai, André. “Durante todo esse tempo, nossa maior preocupação era de que ela tivesse uma parada cardíaca. Foram praticamente 48 horas esperando”, diz Patrícia Maretti, prima de Isabela. A interrupção dos batimentos praticamente impossibilita o aproveitamento de órgãos.

A família tentou, sem sucesso, trazer Isabela via helicóptero do Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (Samu) do DF. O meio de transporte oferece riscos, já que o paciente com morte cerebral está suscetível a quedas de pressão e a paradas cardíacas, o que pode inviabilizar a doação. À 1h de sábado, a jovem saiu de Anápolis na UTI móvel do Samu e duas horas depois deu entrada no Hospital de Base de Brasília. “Ligaram às 7h para dizer que apenas os rins e as córneas foram retirados. Senti que a nossa luta foi em vão. Isabella era uma menina saudável, poderia ter ajudado muitas pessoas” desabafa o pai. “Honestamente, para fazer a minha família inteira passar pelo que passamos, prefiro não ser mais doadora”, critica Patrícia. O coração não foi aproveitado por não existir doadores compatíveis no DF. “O que queremos saber é por que outros órgãos não foram retirados e levados para outros estados. Foi um problema de estrutura ou um erro pontual?”, questiona o tio, Wesley Maretti. “Também não sabemos se o horário da chegada dela foi um problema”, continua o pai da jovem.

As suspeitas de André têm fundamento. Conforme explica o coordenador da Central de Captação de Órgãos do DF, Lúcio Lucas Pereira, hoje o envio de órgão para outras cidades ou estados é feito em aviões comerciais, fruto de um convênio firmado entre as empresas e o Ministério da Saúde. “A Isabella chegou aqui de madrugada, às 3h, e não há voo nem pra chegar ou sair de Brasília nesse horário. Em algumas circunstâncias, você até consegue voo privado e eventualmente a FAB disponibiliza um avião, mas isso não é a regra”, afirma Pereira.

Restrição
Existem situações clínicas em que o paciente não pode ser aceito como doador. Portadores de insuficiência em órgãos que poderiam ser doados, portadores de doenças infecto-contagiosas transmissíveis por meio de transplante como HIV, Chagas, hepatites B e C. Quadros de infecção generalizada, doenças degenerativas e a maioria dos tipos de câncer também são impeditivos. As contraindicações observadas para a doação de sangue também são consideradas em relação aos órgãos e tecidos.

(Ariadne Sakkis, Correio Braziliense)