Madrugada de quinta-feira última no terminal rodoviário de Ceilândia Norte. O relógio marca 5h15 e a estoquista Edilene Rodrigues Monteiro, 28 anos, já espera o ônibus que a levará para o trabalho, no Setor de Indústria e Abastecimento (SIA). Na bolsa, ela carrega um sapato para usar quando estiver no serviço. É que, de casa até o ponto, a trabalhadora anda cerca de 15 minutos por uma via não pavimentada do Setor O. O coletivo deixa a garagem às 5h30. Edilene embarca e inicia seu calvário diário. Por sorte, ainda consegue um assento no coletivo, que sai praticamente cheio. Cinco paradas depois, todos os espaços do veículo são ocupados. Até as escadas e a área sobre o motor do ônibus são tomadas por passageiros. Edilene consegue chegar ao seu destino uma hora e meia depois e, no fim do dia, leva o mesmo tempo na volta para casa. Considerando sua jornada de segunda a sexta-feira, a estoquista passa 15 horas por semana dentro de uma condução barulhenta e desconfortável. No ano, são cerca de 30 dias.

Edilene está entre as 600 mil pessoas que sofrem diariamente com o sistema de transporte público na capital do país. Na última década, o governo se preocupou mais em criar condições para facilitar a vida dos motoristas de carros do que em investir em transporte de massa. De 2001 a 2010, o Departamento de Estradas de Rodagem (DER) aplicou R$ 774,5 milhões em obras de duplicação de rodovias, construção de viadutos e pavimentação, montante quatro vezes maior que os recursos destinados ao metrô — R$ 184,7 milhões. Em igual período, a população do DF ganhou 418 mil novos moradores, enquanto o crescimento da frota de ônibus foi de apenas 570 veículos novos.

Com a mentalidade atrasada, Brasília dá, a cada dia, mais sinais de que continuará na contramão do que pregam os especialistas do setor, unânimes em afirmar que, no DF, gasta-se muito com soluções paliativas. Sem um transporte público eficiente, os brasilienses investem pesado na compra de carros, entupindo as vias, como o Correio mostrou ontem.

E a ampliação das pistas, como a Estrada Parque Taguatinga (EPTG), pouco resolve o caos. Segundo o pesquisador do programa de pós-graduação em transportes da Universidade de Brasília (UnB) Artur Moraes, o alargamento apenas reduziu o tempo entre dois engarrafamentos, mas, devido aos gargalos, os motoristas não conseguem trafegar em um trânsito que flua sem retenções. “Investiram-se milhões e o problema não foi resolvido. Hoje, ao longo da EPTG, o condutor não pega engarrafamento, mas sim no centro de Taguatinga e na altura da Octogonal. Resolver o problema do trânsito não tem efeito se o transporte público não for contemplado”, frisou Artur.

Rapidez
A insatisfação da estoquista Edilene em ficar tanto tempo no ônibus é compartilhada por quase todos os usuários do sistema. Estudo realizado em 2010 pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) mostra que 32,7% dos brasileiros apontam a rapidez como o fator que mais influencia na escolha do meio de transporte. O segundo item mais citado é o preço (14,8%). Agradar a maioria dos usuários do DF, sem necessariamente gastar milhões, seria simples se as autoridades do setor voltassem os olhos para Curitiba. Na capital do Paraná, foi implantado, recentemente, o chamado “Ligeirão”. Trata-se de um ônibus que atravessa toda a cidade sem fazer paradas, proporcionando ao passageiro chegar quase meia hora mais cedo que os coletivos convencionais. Para quem deseja descer nos pontos entre os dois extremos, também existe opção. Outros itens que fazem o transporte público de Curitiba ser considerado o melhor do Brasil são os 82 quilômetros de corredores exclusivos para ônibus, além dos 13 municípios do Estado que têm a rede integrada ao custo de R$ 2,20 por bilhete.

Segundo o diretor de transportes da unidade de Urbanização de Curitiba (Urb), Lubomir Ficinski, a mentalidade adotada na região é a de evitar obras. “Em vez de construir uma via, optamos por usar uma avenida central e duas laterais para ônibus. O custo relativo é muito menor”, disse.

Por todos os cantos do DF, sobram reclamações. Uma volta pelas cidades mais afastadas do Plano Piloto revela a precariedade dos serviços prestados. No Recanto das Emas, as paradas ficam sempre cheias pela manhã. Em pouco mais de meia hora de observação no último ponto da cidade, nenhum ônibus passou com assentos disponíveis. A situação no terminal rodoviário da região é ainda mais deplorável. O local não é pavimentado, os banheiros são sujos e a fiação do local fica exposta.

No entanto, nenhum outro lugar é tão criticado pelos usuários como a Rodoviária do Plano Piloto. No fim do dia, o local vira um formigueiro humano. Entre as 17h e as 20h, pelo menos 300 mil pessoas passam por lá. Com uma frota estimada em cerca de 2,9 mil coletivos, as empresas que operam as linhas do DF atendem no limite. Alguns passageiros chegam a ficar 40 minutos na fila até embarcar. Em muitos casos, só conseguem finalmente entrar na condução depois que um terceiro ônibus chega. “Às vezes, a fila está tão grande que saem dois ônibus lotados e a gente só consegue embarcar no terceiro. É uma falta de respeito muito grande com o trabalhador”, protestou o vendedor de marmitas Maurício Machado Santos, 31 anos, que, na última quinta-feira, quase não conseguiu entrar no coletivo com sua esposa, Elenice Oliveira, 31, e sua filha de 3 anos.

Metrô tem poucos trens para atender a demanda de 160 mil usuários por dia

Os problemas do sistema de transporte público no Distrito Federal não atingem somente quem anda de ônibus. Para as cerca de 160 mil pessoas que recorrem diariamente ao metrô, a situação é igualmente problemática. São apenas 25 trens para atender a demanda. Sete estão em fase de testes e a previsão é de que comecem a operar ainda este semestre. A peruana Marlene Soto, no Brasil há apenas três meses, assustou-se com a quantidade de gente na plataforma da Estação Central, localizada na Rodoviária do Plano Piloto. Com três filhos, ela quase desistiu de entrar em um dos vagões. “Tenho medo de não ter olhos para os três no meio desta multidão toda”, disse Marlene, que está no país à procura de trabalho.

Além da superlotação, muitos usuários, principalmente as mulheres, sofrem com a falta de educação. Na Estação Galeria, à espera da abertura de um dos vagões, na última quarta-feira, a vendedora Ângela Divana Dias, 36 anos, com estatura de apenas 1,52m, era espremida por cinco homens, que se recusavam a deixar que ela passasse à frente. Quando as portas do trem abriram, os cinco se apressaram e ocuparam os assentos, enquanto Ângela teve que se contentar em viajar mais uma vez em pé. “Já me acostumei com este bando de sem-educação”, desabafou.

Perto de Ângela estava o vigilante Carlos Romeiro de Matos, 58 anos, que, espremido no meio de tanta gente, mal conseguia carregar a mochila. “Não deveriam fazer isso com o ser humano. A gente se sujeita a esse tipo de situação pela necessidade de ir trabalhar, mas chega uma hora que dá vontade de largar tudo. Você sai do trabalho cansado e é obrigado a entrar numa lata de sardinha como essa”, revoltou-se.

Com os espaços tão concorridos, muitos optam por concluir o trajeto sentados no chão, como o estagiário Emanoel Fontenele, 29 anos, que usa o metrô há quatro anos. “Estudo e faço estágio. A volta para casa é sempre muito cansativa. Prefiro ir no chão para descansar um pouco, porque, na estação em que eu pego o metrô, ele já passa cheio”, disse.

A insegurança nos arredores das estações do metrô também é alvo de crítica. Em Samambaia, um bicicletário com mais de 30 vagas está abandonado. Como o local fica longe dos olhos dos seguranças da estação, as pessoas preferem deixar suas bicicletas acorrentadas em corrimões próximos à entrada do terminal. “Acontecia que o ciclista deixava a bicicleta, ia trabalhar e, quando voltava no fim do dia, ela não estava lá. Após tantos casos assim, todos passaram a colocar suas bicicletas próximo à entrada”, informou um servidor do metrô, que não quis se identificar.

Expansão
Recentemente empossado como diretor-presidente do Metrô-DF pelo governador Agnelo Queiroz (PT), David José de Mattos promete colocar em prática os projetos de expansão dos trilhos. De acordo com ele, a ideia é construir mais três estações em Ceilândia e duas em Samambaia, além de levar os trilhos até o Hospital Regional da Asa Norte (HRAN). “Os estudos já foram iniciados. A ideia é que essas obras comecem o mais breve possível, mas não posso estimar um prazo porque isso depende de licitação”, ressaltou David.

O diretor também aguarda um posicionamento da Justiça para saber se as obras do Veículo Leve sobre Trilhos (VLT) serão liberadas. O novo meio de transporte que cortaria toda a W3 Sul teve sua construção suspensa (veja Memória) várias vezes por determinação do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios (MPDFT) e pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), sob o argumento de que o Metrô não havia apresentado os estudos de impacto da área e também por suspeita de fraude. Até hoje, as intervenções feitas no trânsito consumiram dos cofres públicos mais de R$ 20 milhões.

Já o diretor do Departamento de Estradas de Rodagens (DER), Fauzi Nacfur Júnior, diz que a primeira providência que tomou ao assumir o cargo foi determinar uma radiografia do órgão. A previsão feita pelo governo passado era investir R$ 147 milhões em obras. “Vamos fazer uma análise de tudo o que está previsto e saber se o que está no papel é prioridade. Só depois de feito esse trabalho poderemos anunciar quais os pontos vamos atacar”, ponderou Fauzi.

Memória

2008

20 de fevereiro
O GDF dá início à primeira etapa da licitação do VLT.

22 de fevereiro
A concorrência é interrompida pela Promotoria de Defesa do Patrimônio Público do MPDFT porque os estudos para a elaboração do edital foram considerados insuficientes.

2009

29 de julho
A União impõe restrições à concessão de aval a um empréstimo de 134 milhões de euros da Agência Francesa de Desenvolvimento para financiar o VLT.

5 de agosto
O ministro Gilmar Mendes, então presidente do STF, suspende as restrições que impediram o GDF de obter o empréstimo.

7 de setembro
As obras do VLT são lançadas.

20 de outubro
O Ministério Público ajuíza ação civil pública pedindo, em caráter liminar, a suspensão do processo de empréstimo da Agência Francesa e das obras do VLT.

13 de dezembro
Ocorrem as primeiras mudanças no trânsito no fim da W3 Sul em decorrência da construção do VLT. Uma semana depois, as obras são embargadas por questionamentos ambientais.

30 de dezembro
Acaba o embargo às obras.

2010

27 de janeiro
A construção do VLT é interrompida pelo MP sob argumento de que o GDF teria aberto a concorrência para as obras antes de concluir o projeto básico.

7 de fevereiro
O Tribunal de Justiça do DF derruba a liminar ajuizada pelo MP em outubro de 2009.

23 de abril
O MPDFT deflagra a Operação Bagre para investigar possíveis fraudes na licitação de projetos básicos de engenharia da obra. O então governador do DF, Rogério Rosso, determina o afastamento de toda a direção do Metrô.

10 de junho
A construção do VLT é embargada novamente pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). De acordo com a superintendente do Iphan, o Metrô-DF não entregara os projetos executivos do VLT solicitados.

Quatro
perguntas para
José Walter Vazquez Filho, secretário de Transportes do Distrito Federal

Os governos anteriores apostaram em grandes obras para melhorar o trânsito no DF. Essa continuará sendo a política adotada pelo novo governo, ou a intenção é investir mais em transporte público?
O compromisso do GDF é oferecer aos cidadãos um transporte público de qualidade. A visão de futuro do governo para o transporte público do DF é de modernidade. Esse conceito agrega conforto, tecnologia, agilidade, segurança, acessibilidade e baixo custo. E requer um conjunto de ações integradas e coesas, abrangendo adequação de infraestrutura viária e de apoio ao transporte público; modernização dos meios de transporte coletivo rodoviário e metroviário; fortalecimento institucional voltado aos processos de regulação, operação e gestão do sistema de transporte público.

Hoje, a principal reclamação do usuário é em relação ao tempo gasto para se chegar ao trabalho, o que poderia ser resolvido com um sistema de integração eficiente.
A integração do sistema do transporte coletivo é essencial ao modelo a ser implementado. É o grande objetivo do governo. Para assegurar uma integração eficiente, de forma simplificada, é fundamental dispor de infraestrutura viária e de apoio, meios de transporte modernos e tecnologia voltada à operação e à gestão do sistema.

Será aberta licitação para quebrar o monopólio das empresas que operam hoje no DF?
O GDF adotará todas as medidas cabíveis para assegurar a legalidade no tocante às concessões públicas relativas à operação do transporte público coletivo do DF.

Quais os projetos que o senhor pretende implantar para melhorar o transporte público?
O governo implementará um modelo de transporte público moderno, de forma que a capital seja um centro de referência na prestação do serviço.

(Saulo Araújo, Correio Braziliense)