O poder destrutivo dos quatro anos de governo Bolsonaro para o Brasil pode ser comprovado em diagnósticos preliminares dos grupos de trabalho do governo de transição. As denúncias são de uma situação financeira dramática em áreas vitais como saúde e educação. Neste cenário de terra arrasada, os serviços essenciais estão paralisados ou correm o risco de serem totalmente comprometidos. Como agravante, o Brasil de hoje é um pária na política externa, e nosso tecido social foi destruído, será necessário um grande esforço do Governo Lula para recuperá-lo. O maior desafio que se apresenta para o Governo eleito é garantir os serviços essenciais e retomar a capacidade de investimento para que o Brasil volte a crescer de forma sustentável.

Na destruição do Estado Brasileiro, houve a dilapidação da máquina pública, perseguição de servidores e aparelhamento funcional de órgãos de fiscalização e controle. Foi justamente nesse ambiente que se deu a privatização da Eletrobras, um dos maiores crimes de lesa pátria do Brasil. A maior empresa de energia elétrica da América Latina está presente em todos os estados da federação, com 30% da geração de energia, 45% das linhas de transmissão e metade da capacidade de energia instalada em grandes reservatórios. A venda da estatal entrou no chamado “pacote boiada” mencionado na fatídica reunião ministerial por Ricardo Salles.

A privatização da Eletrobras se deu no auge da pandemia, quando morriam até 5 mil brasileiros e brasileiras por dia. Autorizada por medida provisória, em rito sumário, sem formação de comissão mista, sem audiências públicas para debater os efeitos com a sociedade, com relatório monocrático (estabelecido por um deputado), repleto de jabutis para contemplar lobbys de bancadas e do setor de gás. Foi uma das primeiras votações em contrapartida ao famigerado orçamento secreto.

Apesar dos debates acalorados no Tribunal de Contas da União sobre subavaliação do bônus de outorga das concessões e tantas outras irregularidades e impropriedades denunciadas pelo Ministro Vital do Rêgo, o processo de privatização seguiu adiante e foi consolidado por uma operação de aumento de capital na B3 em São Paulo em junho desse ano, na qual a participação acionária do estado foi diluída para 43%.

Devido, especificamente, a privatização da Eletrobras, o governo Lula terá de tratar de forma emergecial os principais riscos a seguir:

  • Risco de colapso no sistema elétrico: A Eletrobras vai demitir na holding e suas subsidiárias Chesf, Eletronorte, Eletrosul e Furnas, 2400 trabalhadores, neste primeiro momento e a partir de 31/12/2022. Em um segundo momento, a partir de 1º de maio de 2023, mais 20% do quadro remanescente, ou seja, 1700 trabalhadores também serão demitidos. Todos estes trabalhadores são altamente qualificados e experientes, constituíram longa carreira nas empresas e tiveram grande contribuição para a memória técnica do setor elétrico brasileiro. O desligamento repentino e em massa, sem um planejamento adequado e sem nenhuma preocupação com a transmissão do conhecimento, da retenção do capital intelectual nas empresas, bem como, a substituição da mão de obra altamente especializada por outros trabalhadores sem a expertise necessária agravará a sobrecarga de trabalho nas equipes atuais, que já estão reduzidas, trazendo como consequência um alto risco de colapso ao sistema elétrico brasileiro, podendo deixar grandes regiões do país às escuras.

  • Descotização, mudança do regime jurídico das hidrelétricas, aumento na conta de luz e os usos múltiplos das águas: A chamada descotização de 22 usinas hidrelétricas da Eletrobras muda o regime das usinas em cotas estabelecido pela Lei 12783/2013. Essas usinas, que já tiveram os seus investimentos amortizados vendem a energia abaixo dos preços de mercado. A partir de 2023, essa energia cotizada será descotizada na razão de 20% ao ano, ou seja, serão negociadas, em bolsa, a preço de mercado. Segundo o Dieese, o movimento pode gerar um impacto de até 25% na tarifa de energia elétrica da indústria e das famílias brasileiras num primeiro momento, bem como aumentos gradativos até 2026. É importante registrar ainda os impactos no desenvolvimento regional. Os grandes reservatórios das hidrelétricas da Eletrobras possuem usos múltiplos da água para além da geração de energia. É importante ressaltar que as economias locais se desenvolvem a partir de psicultura, irrigação, navegação e turismo, e que serão altamente prejudicadas, pois são atividades que dependem de um nível de água nos reservatórios. É fato, a descotização das hidrelétricas aumenta a demanda econômica por geração de energia e impõe um conflito de interesses com os usos múltiplos das águas.

  • Oligopólio privado; player formador de preço de energia: espinha dorsal do sistema elétrico nacional interligado, a Eletrobras é responsável por 30% da geração de energia, 45% das linhas de transmissão e metade da capacidade de energia instalada em grandes reservatórios. Com a privatização há a formação de um oligopólio privado no setor elétrico brasileiro. Isso é extremamente prejudicial para o país, pois concede o poder de formação de preços (“price maker”) na comercialização de energia para um grupo que privilegia a lucratividade de seus acionistas. Isso também implica na artificialização e manipulação da tarifa de energia elétrica no Brasil. Além disto, com a privatização da Eletrobras, o Estado brasileiro perde um grande mecanismo de regulador de preço da energia elétrica, já que não haverá mais uma empresa estatal para participar dos leilões de novos empreendimentos, para competir com a iniciativa privada.

  • Risco ambiental e aumento na conta de luz pela imposição de contratação 8Gw de energia termelétrica a gás: Uma das contrapartidas essenciais no texto da lei 14182/21 (privatização da Eletrobras) é a contratação de 8Gw de termelétricas a gás, as lagostas elétricas. Os custos para a construção de infraestrutura vão, segundo analistas, ser repassados para os consumidores com tarifas mais altas. Além disso, a contratação das térmicas a gás geraria um aumento, desnecessário, de 74% nas emissões de gases de efeito estufa, segundo um estudo do Idec (Instituto de Defesa do Consumidor). O movimento vai na contramão mundial da transição energética por geração de energia mais limpa e sustentável.

O processo complexo de privatização da Eletrobras submete a sociedade brasileira a outros diversos riscos. Elencamos os principais e mais emergenciais como o risco de desabastecimento, de aumento na conta de luz e de risco ao meio ambiente que podem impactar num curto prazo, na qualidade de vida de nossas famílias, nas atividades da indústria e na retomada do desenvolvimento no Brasil.

Diferentemente de outras privatizações, no caso da Eletrobras que foi feita por diluição de capital, a União ainda mantem 43% do capital votante e é garantidora de todos os financiamentos da empresa privatizada. Considerando que o processo de privatização foi consolidado no segundo semestre de 2022, pouca coisa mudou na empresa desde então.

Olhando para a tendência mundial, além, da transição energética que se impõe, vários países do mundo estão retomando o controle do Estado para serviços de infraestrutura como saneamento e energia. Cenários de guerra e de pandemia reforçaram este alerta. Recentemente o governo francês retomou o controle da EDF e o governo alemão reestatizou suas usinas térmicas. Essa tendência traz a monta de mais de mil reestatizações pelo mundo nos últimos 20 anos.

A partir do exposto, com os riscos elencados e os caminhos estabelecidos, o Coletivo Nacional dos Eletricitários (CNE), entidade que congrega 34 sindicatos, 7 federações, 1 confederação e 4 associações de trabalhadores, desenvolveu propostas viáveis do caminho de volta para a reestatização da Eletrobras. Neste sentido, o CNE apresentou as referidas propostas para o Programa de Governo do presidente Lula e agora para o GT de Minas e Energia da Equipe de Transição do qual o CNE participa.

O Coletivo Nacional dos Eletricitários (CNE) entende que o GT de Minas e Energia da equipe de Transição do Governo Lula tem a obrigação de fazer um diagnóstico completo das consequências da privatização da Eletrobras para o país e acelerar os estudos para a reestatização da Eletrobras. Caso contrário, os riscos previstos neste texto poderão prejudicar enormemente o Brasil e o povo brasileiro. A hora de agir é agora, para não chorar em cima do leite derramado!