Em entrevista ao Jornal Energia Alerta, a deputada federal Erika Kokay (PT-DF) ressalta que o processo de privatização no Brasil nunca foi tão feroz. “Privatizar a Eletrobras significa não ter qualquer noção de soberania nacional e fazer com que o patrimônio que foi duramente conquistado pelo povo brasileiro seja pilhado pelos interesses internacionais. O deus mercado exige sacrifícios”.

No Congresso Nacional, a deputada federal Erika Kokay (PT-DF), reeleita para o terceiro mandato na Câmara dos Deputados, trava uma intensa luta em defesa da Eletrobras pública. Na coordenação da Frente Parlamentar em Defesa do Setor Elétrico Nacional, realizou uma dezena de audiências públicas e seminários para apontar os efeitos da privatização da estatal para a população e à soberania energética do país.

Em entrevista ao Jornal Energia Alerta, a deputada ressalta que o processo de privatização no Brasil nunca foi tão feroz. “Tentar vender nosso patrimônio para pagar dívidas ou para tentar um equilíbrio fiscal é não considerar que uma nação cresce economicamente na medida em que implementa um programa de desenvolvimento que precisa de insumos, infraestrutura, crédito, dentre outros”, salienta.

Para Kokay, a iniciativa privada atende os interesses dos seus donos, movidos apenas pelo próprio lucro. Ela destaca ainda os crimes da Vale, privatizada em 1997, que deixou um rastro de sofrimento e morte com as tragédias de Mariana e Brumadinho. “Entregando corpos, entregando direitos” em nome do lucro.

Diante de toda tragédia e retrocesso imposto à população com a dilapidação do patrimônio público, a deputada afirma que “as mulheres são sempre mais impactadas em qualquer crise”.

 A pauta da privatização, remanescente do governo Temer, se mantém na agenda do Congresso Nacional. Como você avalia a tentativa de venda das estatais, conforme anunciado pelo governo Bolsonaro?

Em verdade, o Brasil está sendo ameaçado por uma verdadeira pilhagem ao seu patrimônio. A fala do ministro da economia se referindo às estatais como se fossem “filhos drogados” evidencia esse quadro. O pré-sal e os instrumentos estratégicos para um projeto de desenvolvimento nacional estão sendo entregues. Esse processo de privatização nunca foi tão feroz. Tentar vender nosso patrimônio para pagar dívidas ou para tentar um equilíbrio fiscal é não considerar que uma nação cresce economicamente na medida em que implementa um programa de desenvolvimento que precisa de insumos, infraestrutura, crédito, dentre outros. Já que eles gostam tanto de falar de administração familiar, vamos exemplificar assim: uma família tem uma fábrica de bolos que gera renda, mas está com uma dívida. Então a família resolve vender o forno e o fogão da fábrica para pagar dívidas. O problema será resolvido? Não. Então é preciso romper a visão financeirista da economia, de valorizar apenas o capital financeiro. O Brasil está dominado pelo rentismo.

O Sistema Eletrobras permanece no PPI como prioridade no desmonte do patrimônio público. Qual o impacto para o setor elétrico e população a perda do controle de uma empresa estratégica como a Eletrobras?

A intenção do governo não é apenas privatizar, mas desnacionalizar. Porque a Eletrobras possivelmente será entregue pros canadenses, chineses ou estadunidenses. Nos Estados Unidos as hidrelétricas são protegidas pelo exército porque têm caráter estratégico. Aqui um patrimônio que tem como ativo por volta de 400 bilhões o governo quer entregá-lo por 12 bilhões. Portanto, significa o Brasil perder a condição de ter uma política energética soberana fundamental não apenas para o bem estar social como para o desenvolvimento econômico. Com a privatização o subsídio cruzado, que significa levar energia pra onde tem maior custo compensando onde tem maior lucro, deixa de existir. A partir daí prevalece a égide do lucro e não a do desenvolvimento e da eliminação de desigualdades sociais e regionais. Por isso, vamos continuar resistindo.

 A iniciativa privada tem condições de garantir a plena soberania energética no país?

Claro que não. A iniciativa privada atende os interesses dos seus donos, movidos apenas pelo próprio lucro e projetos como Luz Para Todos, onde se levou energia para 15 milhões de brasileiros e brasileiras, não estão no radar de uma empresa que busca apenas o retorno dos seus investimentos. Quem visa apenas o lucro não se preocupa em mitigar desigualdades. Privatizar a Eletrobras significa não ter qualquer noção de soberania nacional e fazer com que o patrimônio que foi duramente conquistado pelo povo brasileiro seja pilhado pelos interesses internacionais. O deus mercado exige sacrifícios.

A população de Mariana e Brumadinho está sofrendo com os efeitos da privatização da Vale. Entregar outras estatais à iniciativa privada é permitir que outros crimes, como o rompimento de barragens, voltem a acontecer?

Toda vez que o mercado se enfurece é preciso acalmá-lo, entregando corpos, entregando direitos. Recentemente, o Brasil está impactado com a entrega de mais de 300 corpos em Brumadinho porque a Vale impôs que a barragem do Córrego do Feijão tivesse um retorno lucrativo maior para compensar a diminuição do preço do minério de ferro. Então que se danem as vidas? O Brasil viu a lama que significa o processo de privatização e o que isso representa de desprezo à vida humana com uma experiência muito concreta. A Vale começou a cometer esses crimes no momento em que passou a ser regida pelo lucro.

O MAB aponta que mais de um milhão de atingidos por barragens no país, 70% não receberam nenhum tipo de indenização. Como vai ser dar a luta parlamentar para garantir que os atingidos sejam indenizados em sua totalidade?

Existe um dano indelével que precisa ser reparado pelo estado. É preciso fiscalizar e exigir que haja a indenização e o acompanhamento das pessoas atingidas. E não somente as vítimas fatais, mas também quem perdeu seu território que é onde se desenvolve sua forma de ser enquanto povo. E não é só isso, crimes como o de Mariana e Brumadinho têm efeito prolongado. A indenização que se dá pela recomposição dos danos materiais que a Vale tem se recusado a arcar no caso de Mariana é insuficiente. É preciso fazer o acompanhamento da saúde das pessoas porque estudos feitos em Mariana mostram que as vítimas carregam um nível maior de substâncias tóxicas no seu organismo. Indenizar significa também não permitir que o lucro possa esmagar as vidas com lama. Por isso temos um projeto na Câmara para que qualquer grande obra tenha como condicionante para sua efetivação um pacto socioambiental que defenda os direitos humanos.

Na sua avaliação, as mulheres são mais impactadas nessas situações?

As mulheres são sempre mais impactadas em qualquer crise. Vivemos em um país que não fez o luto do colonialismo, onde os donos das terras ainda se sentem donos das mulheres e das crianças. Portanto, as mulheres como têm tripla jornada, ganham menos e têm o exercício da sua humanidade limitado ou ferido são inegavelmente as mais atingidas em momentos de crise.

Frente a esta realidade, como fortalecer a organização das mulheres no campo popular?

Em verdade são 3 elementos básicos para construir uma sociedade onde possamos romper a desumanização simbólica que atingem as mulheres. Ao nos impedir de termos direito aos nossos corpos, nossas falas, ao nosso não, ao nosso futuro, às nossas vidas nos tiram a condição de sujeitos. O exercício da nossa humanidade, portanto, fica impedido. E quando há permissão para que esse processo aconteça com mais da metade da população brasileira, que são as mulheres, se naturaliza a desumanização simbólica que sempre leva à desumanização literal. É isso que o governo Bolsonaro quer fazer para que o extermínio de parte da população seja naturalizado. Então é preciso ter intersetorialidade, exigindo que a equidade de gênero esteja em todas as políticas públicas, particularmente na educação. Por isso, ao calar as escolas sobre a equidade de gênero se rompe a proteção de crianças e adolescentes, uma das políticas públicas mais generosas e importantes na construção de uma cultura de direitos humanos. Ao mesmo tempo, é preciso garantir a territorialização porque somos mulheres do campo, da cidade, das florestas, das águas e temos nossas especificidades que têm que ser consideradas na discussão de gênero. Em cada território é preciso construir redes de defesa dos direitos das mulheres com o envolvimento do conjunto das organizações da sociedade civil e dos órgãos do estado. E, por fim, dar espaços de protagonismo que possibilitem a construção do empoderamento para que possamos nos organizar e desnaturalizar o que o sexismo e o machismo quer como natural que é a subalternização das mulheres em relação aos homens.

Fonte: Jornal Energia Alerta – Edição nº 43.