No momento em que o país precisa ajustar as contas públicas e que o presidente Jair Bolsonaro promete uma ampla reforma de Previdência, é uma dúvida até para a área econômica do governo qual será a mudança nas regras para os militares.

Quem introduz o tema aposentadoria ao diálogo com um militar tem que estar preparado para uma resposta que, invariavelmente, segue o mesmo roteiro: o argumento de que eles não fazem parte da Previdência.

O script é adotado tanto pelos principais nomes das Forças Armadas – o ministro da Defesa, general Fernando Azevedo e Silva, e o comandante do Exército, general Edson Pujol – quanto pelos subordinados.

“Tudo que se fala a respeito de Previdência Social não se refere aos militares. Este é o primeiro princípio legal que nós temos que pensar”, disse Pujol, no dia em que assumiu o comando da mais numerosa das três forças.

Em entrevista à BBC News Brasil, na mesma semana em que assumiu o cargo, o ministro Fernando Azevedo e Silva disse que os militares não serão atingidos por uma reforma da Previdência “porque o militar não tem Previdência”.

Essa discussão sobre a nomenclatura é uma forma de fugir do debate central, que é exatamente a necessidade de mudar as regras dos benefícios pagos a servidores inativos (militares e civis) e a aposentados da iniciativa privada, segundo o economista e sociólogo Marcelo Medeiros, vinculado à Universidade de Princeton, nos EUA, e à UnB (Universidade de Brasília).

“Não chamar (o sistema dos militares) de Previdência está errado e é uma tentativa de fugir do problema. Eles têm Previdência e ponto final. O ponto fundamental é: você paga às pessoas quando elas param de trabalhar. No mundo inteiro isso é chamado de aposentadoria ou pensão”, afirmou.

Militares elaboram a própria proposta

No momento em que o país precisa ajustar as contas públicas e que o presidente Jair Bolsonaro promete uma ampla reforma de Previdência, é uma dúvida até para a área econômica do governo qual será a mudança nas regras para os militares.

O motivo é: a tarefa de elaborar uma proposta de mudanças para os militares está nas mãos deles mesmos, e não da equipe de Previdência do superministério de Paulo Guedes (Economia), segundo integrantes do governo.

Procurada pela reportagem, a assessoria de imprensa da secretaria informou que não vai comentar o tema.

Mudança em tempo de serviço e pensão

Nos bastidores, os militares dizem que aceitam algumas mudanças nas regras de aposentadoria se o governo concordar em promover uma reestruturação da carreira deles.

Os integrantes das Forças Armadas têm reclamado de um salário que consideram defasado em relação a carreiras de servidores civis, como na Polícia Federal, no Itamaraty e no Banco Central.

Segundo militares que participam das discussões, há um entendimento sobre a necessidade de ampliar o tempo de serviço, que hoje é de 30 anos. Também estudam uma alteração na pensão, já que hoje, quando um militar morre, deixa de incidir um desconto em cima do valor do benefício.

A proposta do Ministério da Defesa, nos moldes do que já defenderam durante o governo do ex-presidente Michel Temer, passa agora por nova análise, visto que em janeiro houve mudança em toda a cúpula militar. Além da troca no primeiro escalão do ministério da Defesa, também houve alteração nos comandos das três forças.

As peculiaridades

Um tópico que nunca falta em uma conversa sobre o tema com militares é a peculiaridade da carreira dos militares em relação aos civis.

Entre as dificuldades que eles alegam, estão: militares não têm direito a hora extra, adicional noturno ou de periculosidade; têm a impossibilidade de acumular empregos, de fazer greve ou de poder se sindicalizar; e a necessidade de disponibilidade permanente, com uma jornada diária que pode se prolongar além das corriqueiras 8 horas.

Em geral, especialistas concordam com a existência dessas peculiaridades, mas ponderam que isso deve impactar na carreira, enquanto eles estão na ativa, e não na remuneração de quando vão para a reserva.

O Exército tinha, no início do ano, mais de 67.600 filhas de militares recebendo R$ 407 milhões por mês – o que dá um valor de mais de R$ 5 bilhões por ano — Foto: EPA

O especialista defende uma melhoria na carreira dos militares, mas diz que o país não pode abrir mão de uma reforma previdenciária que envolva a categoria. Para ele, boas soluções contemplariam o aumento do tempo de serviço dos militares, além de prever uma remuneração proporcional ao tempo de contribuição, o que estimula que eles passem mais tempo na ativa.

“E é claro que tem que ter um período de transição, para todo mundo. As pessoas têm que se preparar para as mudanças.”

Medeiros defende que o governo deveria se apressar em apresentar os cálculos de previsão de economia com os diferentes aspectos das propostas que estão em avaliação: “É preciso fazer uma reforma mais baseada em cálculo e menos baseada em ideologia.”

O tamanho do rombo

O orçamento deste ano prevê um déficit na Previdência que soma mais de R$ 305 bilhões, considerando um resultado negativo de R$ 218 bilhões do regime geral (INSS), além do regime dos servidores civis (R$ 44,3 bilhões) e militares (R$ 43,2 bilhões).

Embora esses números sejam do próprio governo, os militares negam esse déficit com o argumento de que eles não têm um sistema previdenciário.

“A reforma dos funcionários públicos como um todo passa por isso: se aposentar mais tarde e contribuir mais”, disse.

Cerimônia de transmissão de cargo a Fernando Azevedo e Silva no Ministério da Defesa foi a única da qual Bolsonaro participou fora do Planalto — Foto: AFP

Gamerman diz que o mercado financeiro se preocupa menos com as mudanças específicas dos militares e mais com o possível impacto dessa medida para a aprovação de uma reforma mais ampla.

“O mais importante para o mercado é aprovar uma reforma em geral. Se disserem que deixar os militares de fora vai facilitar para o regime geral, aí o mercado vai dizer: então tá ótimo.”

O economista lembra, ainda, que a situação fiscal dos estados também exige que uma reforma previdenciária contemple os servidores dessa esfera – inclusive policiais militares e bombeiros.

Falta de pulso

A partir deste ano, os militares passaram a ter a favor deles uma presidência composta por duas figuras oriundas do Exército – Bolsonaro, capitão reformado, e o vice, general da reserva Hamilton Mourão – e, portanto, mais sensível às causas da categoria. Além da chapa eleita em outubro, Bolsonaro nomeou diversos colegas das Forças Armadas para comandar órgãos públicos.

Marcelo Medeiros critica a possibilidade de os militares ficarem de fora do esforço que as outras categorias terão de fazer para o ajuste das contas públicas. “Estamos em um momento em que exigiremos um esforço de todos, inclusive dos militares. É falta de pulso o governo falar grosso com pedreiros e faxineiras e afinar quando o assunto são militares.”

“Estamos em um momento em que exigiremos um esforço de todos, inclusive dos militares. É falta de pulso o governo falar grosso com pedreiros e faxineiras e afinar quando o assunto são militares”, diz economista.

Para o especialista, a reforma é uma necessidade inclusive para garantir orçamento para a área de defesa.

“O Brasil vai acabar gastando mais com aposentadorias do que com armamento. Não faz o menor sentido ter militares bem aposentados e mal armados”, diz.

A falta de clareza sobre os termos da reforma que deve ser apresentada por Bolsonaro no início do governo ainda é grande, segundo Medeiros. Ele alerta para a necessidade de abranger toda a população e avalia que o principal problema no Brasil é a falta de idade mínima, que permite que as pessoas se aposentem cedo demais.

“Até agora, o governo atual está dando sinal de confusão. A gestão anterior deu sinal claro de que faria reformas com mais força para afetar pedreiros e empregadas domésticas. Mas tem que afetar todo mundo, não pode esperar que só os mais pobres paguem a conta do controle fiscal.”

Fonte: BBC Brasil