Por Felipe Araújo* e Ikaro Chaves*

O jornal britânico The Guardian publicou, no dia nove de janeiro, artigo de Will Hutton, intitulado “We can undo privatization. And it won´t cost us a penny” (Podemos desfazer a privatização. E não nos custará um centavo). O artigo se desenvolve a partir de uma pesquisa realizada por Matthew Elliott e James Kanagasooriam (public opinion in the pos-Brext era: Economic atitudes in modern Britain) onde fica constatado que 83% da população é a favor da nacionalização da água e 77% da eletricidade e do gás, demonstrando o reconhecimento pela sociedade britânica, após décadas de experiência, que empresas prestadoras de serviços públicos devem ser tratadas de forma diferenciada, com atuação direta do Estado para melhor garantir os interesses da sociedade.

Não se trata de uma pesquisa de opinião realizada em um país qualquer, mas sim de um estudo profundo sobre a experiência do povo da Grã-Bretanha, país pioneiro na implantação do neoliberalismo, e até então, utilizado largamente como modelo bem sucedido. Não por acaso, foi justamente da Grã-Bretanha que o governo FHC trouxe o modelo de privatização e mercantilização do setor elétrico brasileiro nos anos 90 e que agora o governo Temer busca aprofundar sem a devida discussão técnica e desconsiderando importantes exemplos mundiais, como a realidade britânica.

Desde que a reforma do setor elétrico brasileiro foi anunciada nos anos 90, técnicos do setor já alertavam para o absurdo que era transplantar o modelo britânico para o Brasil. Trata-se de um país plenamente desenvolvido, menor do que o estado de São Paulo e cuja matriz elétrica era basicamente a termoeletricidade. Por sua vez, o Brasil é um país em desenvolvimento, com grande demanda por mais energia, de proporções continentais, com regiões de difícil acesso, ainda com sistemas isolados e com uma matriz baseada na hidroeletricidade. O “apagão” de 2001 foi a prova de que o modelo do liberalismo radical inglês era absolutamente inadequado ao Brasil.

A verdade é que nem todo mundo embarcou na onda neoliberal no que se refere ao setor elétrico. Muitos países liberalizaram ou até promoveram alguma privatização, mas alguns dos países mais importantes do mundo mantiveram, em maior ou menor grau, significativo poder de intervenção direta do estado no setor elétrico por reconhecer o seu papel estratégico. Alguns governos chegaram a voltar atrás nas medidas de privatização e liberalização, por conta de resultados aquém do esperado, como é o caso da África do Sul.

Uma das constatações mais evidentes é que onde a hidroeletricidade possui papel fundamental, as empresas estatais são amplamente predominantes, esse é o caso da Noruega, onde 90% da geração e da transmissão estão nas mãos de empresas estatais e da província do Quebec no Canadá, onde a empresa estatal Hydro-Quebec, maior produtora de energia elétrica do país, possui praticamente o monopólio do setor elétrico, exportando, inclusive, grande parte para os EUA.

Mas mesmo países com predominância da termoeletricidade não abrem mão de forte presença estatal no setor elétrico, esse é o caso da Rússia e da Índia, grandes países membros dos BRICS, além da África do Sul, onde o setor elétrico é basicamente estatal. Este tratamento estratégico do setor elétrico não é exclusividade de países em desenvolvimento. Em alguns dos países mais desenvolvidos do mundo, as empresas estatais permanecem tendo papel predominante. Esse é o caso da França, segunda maior geradora de energia elétrica da Europa, através da EDF (Eletricitè de France) e da Coreia do Sul, através da KEPCO (Korean Eletric Power Corporation), que possui controle da geração, transmissão e distribuição do país, visando garantir o desenvolvimento de uma economia eletrointensiva e um consumo doméstico que em 2012 já era o quádruplo do brasileiro.

A China, que possui a maior população, o terceiro maior território e a segunda maior economia do planeta, além de ser há 40 anos a economia que mais cresce no mundo, possui seu setor elétrico quase que totalmente controlado pelo Estado, sendo um dos seus pilares estratégicos para atender com êxito a crescente demanda interna em um país com carga dez vezes maior que a brasileira. Até mesmo nos EUA, considerada uma das economias mais liberais do mundo, apesar de o setor elétrico ser majoritariamente privado, as hidrelétricas são consideradas instalações estratégicas e fundamentais à segurança nacional e, portanto, são majoritariamente pertencentes ao Estado e em grande parte geridas pelo próprio exército americano.

Este mesmo país oferece o exemplo da TVA (Tennessee Valley Authority) criada na década de 30 com o objetivo de melhorar a qualidade de vida da região, que foi responsável pelo maior programa de construção de hidrelétricas dos EUA na década de 40, e atualmente permanece como renomada empresa estatal na geração de energia e desenvolvimento social na sua região de abrangência.

Tantos exemplos históricos e atuais impelem a sociedade aos numerosos questionamentos feitos ao que propõe o governo através do Ministério de Minas e Energia, entretanto, existem preocupações ainda maiores em relação ao posicionamento geopolítico do Brasil após abrir mão da atuação estatal direta no setor elétrico.

Vários países centrais já anunciam, por exemplo, a interrupção da fabricação de automóveis movidos a combustão para priorizar a mudança da sua frota para automóveis elétricos. Grandes mudanças como essa anunciam no futuro próximo uma significativa alteração na matriz energética mundial que historicamente demanda massivos aportes de capital com altos níveis de incerteza.

Investimentos com estas características, por evidentes razões, não são atrativos ao capital privado e dependerão necessariamente de atuação direta estatal em qualquer país verdadeiramente comprometido com uma agenda desenvolvimentista. Neste cenário que se avizinha, sem uma Eletrobras forte e Estatal, frente às principais nações desenvolvidas e em desenvolvimento, o Brasil amargará décadas de atraso industrial e tecnológico, reduzindo a sua atual importância geopolítica a de mera nação coadjuvante.

Dentre as nações que já iniciaram movimentos de reposicionamento estratégico para essa futura mudança na matriz energética mundial está a Inglaterra, com a qual iniciamos este artigo. Neste país, os cidadãos, após décadas recebendo serviços públicos geridos por empresas de controle privado, reconheceram que tais serviços devem ser geridos pelo estado britânico para que tenham garantias no atendimento de seus interesses, ao invés, de interesses de poucos acionistas. Propõe-se, como questão básica, a mudança estatutária destas empresas onde estaria explicitado que seu objetivo principal seria o provimento dos serviços públicos, sendo o lucro um objetivo secundário. Uma mudança de paradigma radical em um país ainda considerado por muitos pseudo-especialistas como a “Meca” do liberalismo.

No Brasil, há um governo que pretende colocar o país em uma direção, por todos os motivos aqui expostos, estrategicamente equivocada, tecnicamente não defensável e socialmente desastrosa. Assim, é preciso discutir o setor elétrico, melhorar a gestão das nossas empresas. Necessitamos de empresas de fato públicas e não de governos, mas principalmente, é urgente colocar a nação na direção correta, pois, de outra forma poderemos literalmente atravessar uma ponte para o passado, nesse caso, um passado de trevas.

Ikaro Chaves é engenheiro eletricista da Eletrobras Eletronorte e diretor no STIU/DF; Felipe Araújo é engenheiro civil da Eletrobras Furnas e diretor da ASEF